Salvador Nogueira na teia do Aranha

REVIEW: Homem-Aranha (“Spider-Man”)
Por Salvador Nogueira

Minha ida ao cinema para ver “Homem-Aranha” foi quase tão atribulada quanto à própria produção do filme –o que não é pouca coisa. O longa-metragem estava sendo “oficialmente” parido desde 2000, quando Sam Raimi foi anunciado como diretor. Mas já se falava no filme do cabeça de teia muito antes. Segundo rumores, o projeto já tinha até passado pelas mãos do premiado diretor James Cameron, antes de ganhar a luz verde da Columbia e da Marvel.

Depois de tantos anos de vai, não vai, especulação e ansiedade, estava realmente aflito para ver o que fizeram de um de meus heróis favoritos. Levando em conta o último esforço da Marvel no cinema, com “X-Men”, não havia muito com que se preocupar. Mesmo assim, não pude evitar uma certa aflição.

As notícias de que os cinemas estariam lotados logo dispararam meu senso de aranha. Apesar de eu só ter chance de ir no domingo, imaginei que o furor da estréia, na sexta-feira, não teria passado. Decidi então ganhar uma boa margem de tempo, dirigindo-me ao cinema (o conjunto de salas da UCI no Shopping Jardim Sul, zona sul da capital paulista) por volta das 18h, para comprar entradas para sessão das 20h35. Inútil. Depois de quase uma hora na fila, só consegui comprar duas entradas para as 21h10.

Poderia ter sido pior, entretanto; quando fui ver “O Senhor dos Anéis”, não consegui entrada para nada, o que me colocou em uma situação não muito cômoda com minha namorada. Aliás, namoradas são sempre um fator de instabilidade: não necessariamente levam a catástrofes, mas é impossível prever o que a presença delas vai causar na sua vida a seguir.

Com ingressos na mão e tempo suficiente para um jantar confortável, imaginei que nada mais poderia dar errado. Nesse momento entra o tal fator “instabilidade”. Olhando distraidamente algumas revistas em uma mini-livraria ao lado do cinema, cometi um erro fatal: “Mas essa tal de Kirsten Dunst é mesmo bonitinha, não?”, comentei, inocente. A resposta veio seca: “É. Ainda bem que ela morre neste filme”.

Meu medo começou a regressar. Como Mary Jane poderia morrer no primeiro capítulo da saga cinematográfica do Homem-Aranha? O que estão fazendo com um dos melhores heróis já criados? E a coisa só piorou: “Pois é, o Duende Verde vai matá-la e é por isso que o Aranha decide combatê-lo”. O medo já se convertia em suor gelado quando resolvi rebater as afirmações. “Isso é um absurdo. Isso não é Batman, é Homem-Aranha. Não tem nada a ver”, respondi, em protesto. “A Mary Jane é como uma Lois, do Superman. Ela não pode morrer logo de cara.”

Aí vocês sabem como são as namoradas. Você nunca acredita em mim, patati-patatá. Segundo ela, Mary Jane morria, sim. Ela havia conversado com um entendido nos quadrinhos do Aranha, que teria “revelado” a ela toda a verdade do filme. “Além do mais, de quem é aquele funeral que aparece no trailer?”

Continuei negando, mas já estava duplamente contrariado. Primeiro pelo medo de que ela tivesse razão e a Mary Jane estivesse cortada do próximo filme. Segundo por ter recebido um “spoiler” surpreendente e bombástico a apenas uma hora do filme começar, depois de fugir deles como o diabo da cruz por anos seguidos.

Já na fila para entrar na sala, houve um certo reconforto. A revista oficial da UCI, distribuída na porta do cinema, trazia uma matéria sobre o filme, revelando que Tobey Maguire e Kirsten Dunst já tinham contrato para a filmagem da continuação. “Viu só?”, disse eu, satisfeito. “Como ela vai morrer nesse filme se vai aparecer no próximo?”. Ela ainda não se deu por vencida: “Só sei que ela morre neste.”

Passamos cerca de 40 minutos na fila de entrada. Éramos uns dos primeiros, de um amontoado quilométrico de gente. Tudo parecia animador agora, faltando apenas instantes para que as portas se abrissem. Até que… “Preciso ir ao banheiro”, ouço ao meu lado. Depois de alguns segundos de indecisão, julguei que ainda daria tempo para ela ir e voltar antes de as portas se abrirem. Ela foi. Passa um minuto, e nada. Dois, e nada. Três, e nada. QUATRO, e nada. As portas se abrem. Mais um segundo de indecisão: entro e guardo lugar para ela, na esperança de que ela me encontre depois, ou espero na porta?

A indecisão só durou mesmo um segundo. Os funcionários do cinema estavam checando as entradas para ver se batiam com a sala, a fim de evitar superlotação –e as nossas entradas estavam com ela, separadas de mim pela intransponível barreira que é o banheiro feminino.

Esperei, esperei, esperei… vi, uma a uma, todas as pessoas da fila entrarem. Isso levou mais um minuto ou dois, enquanto o desespero tomava conta de mim. Depois que o último da fila passou, decidi que precisava fazer algo. Fui até a porta do banheiro feminino. Quando alguém ameaçou entrar, pedi que verificasse se minha namorada estava lá dentro. Agonizando, encontro-a já do lado de fora. Ela havia usado o outro banheiro, do outro lado da sala. Nos encaminhamos para o cinema, e eu já estava espumando de raiva.

Depois de quase duas horas acumuladas de fila, tudo que consegui foram dois lugares na esquina do cinema, em diagonal, a uma altura mediana. Duas fileiras para baixo e bem ao centro se sentava o grupo que estava imediatamente na nossa frente na fila de entrada. Terrível.

A frustração parecia iminente, mas quando as luzes se apagaram e o filme começou a rodar, tudo se transformou. O que pude testemunhar é a melhor adaptação de quadrinhos já feita para o cinema –possivelmente melhor que o clássico “Superman” de 1979, com o inesquecível Christopher Reeve.

Quem temia que Tobey Maguire, com seu estilo de atuação aparentemente sonso, não iria cair bem como Peter Parker se enganou redondamente. O ator encarna de forma tão realista e vívida o jovem aracnídeo que eleva as histórias fantásticas do herói a um outro nível de verossimilhança.

Aliás, é isso que faz do filme, e do personagem principal, algo tão especial. “Homem-Aranha” não é só a história de um herói; é a história de um ser humano qualquer, como eu ou você. E Maguire soube como ninguém encarnar esse aspecto “pé no chão” do personagem.

Dunst faz seu trabalho muito bem, embora a mocinha do filme não seja exatamente um papel que exija muito. Já Willem Dafoe está perfeito como o Duende Verde. Sua atuação é vibrante e digna dos grande vilões, como a de Jack Nicholson, que salvou o primeiro filme moderno do Batman com sua interpretação espetacular do Curinga.

A direção de Sam Raimi também é algo a se destacar. Além das dificílimas e espetaculares tomadas de ação (e não há uma sequer que não funcione neste filme), ele consegue captar aspectos sutis do “feel” aracnídeo. Como representar em tela, por exemplo, o famoso “sentido de aranha”, representado nos quadrinhos por pequenos traços irregulares sobre a cabeça do personagem? Raimi se sai muito bem com um ruído de fundo agressivo, mas não muito alto, acompanhado por um zoom de câmera súbito, mas não chocante, no rosto de Peter Parker. O efeito é maravilhoso.

Aliás, a produção prima pela preservação da originalidade do personagem, o que faz muito bem, diga-se de passagem. O Aranha que todos encontrarão no cinema é o mesmo que nos acostumamos a ler nas últimas décadas (tirando aquela terrível fase do uniforme preto, que nem chega a dar o ar da graça por aqui, felizmente), sem tirar nem pôr. As mudanças (poucas) feitas na história da origem do personagem, só ajudam a atribuir realismo ao filme. Nesse pacote inclui-se a picada por uma aranha geneticamente modificada (em vez de radioativa) e o fato de o Aranha produzir e disparar teia de verdade, sem o auxílio do famoso dispositivo disparador.

Aproveitando a deixa, vale ressaltar que Raimi e seus comandados conseguiram trazer com brilhantismo a “origem” do Aranha, sem cair numa história entediante para o telespectador. Em filmes baseados em heróis, a tradicional história de “origem e amadurecimento” do personagem corre sempre um risco muito grande de se tornar tediosa. Eu senti isso um pouco em “X-Men”, por exemplo, mas não aqui. A combinação da direção ágil de Raimi com o fato de Peter ser uma pessoa com quem podemos nos identificar com facilidade torna a experiência de “redescobrir” o nascimento do Homem-Aranha simplesmente fascinante.

De quebra, os efeitos especiais são os mais espetaculares já vistos. Pela primeira vez há um herói em filme que consegue, graças a imagens geradas por computador, realizar todos os escapismos que ele costuma fazer nos quadrinhos e em desenho animado. Não é como os filmes do Batman, que tentam (sem sucesso) transmitir a ilusão de ação com tomadas rápidas e que não permitem que você entenda muito o que está havendo. Aqui a cena é bem clara –você vê o que o Aranha está fazendo, por mais mirabolante que seja. Três “Vivas!” para a turma dos efeitos visuais!

A única coisa que me incomodou um pouco no filme todo foi o desfecho. Peter Parker precisa renunciar a seu maior desejo, movido por um sentimento de nobreza que deveria estar além de seu aspecto de “herói humano”. Mesmo assim, é uma cena tocante, que ajuda a nos lembrar das mais profundas origens do herói: “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”.

No final das contas, sem entregar muito para quem ainda não viu, só posso dizer uma coisa. Vale a pena. Ver, rever, rerever e, em alguns meses, comprar o DVD, só para ver tudo de novo. E, por mais que minha namorada lamente, posso assegurar-lhes de que a Kirsten Dunst realmente é bem bonitinha. E vai estar no próximo filme.

Salvador Nogueira é editor do TB