O povo contra Rick Berman

Se você leu a primeira coluna que escrevi para este site, sabe da minha profunda decepção com o atual estado criativo e administrativo do franchise hollywoodiano conhecido como Jornada nas Estrelas, por conta do todo-poderoso produtor Rick Berman.

Apesar dos preparativos (nada bons, na minha opinião) de um novo filme e uma nova série para o ano que vem, a verdade é que Berman está cansado e estressado, após 15 anos vivendo no século 24. E se ele não mudar sua atitude ou tomar um calmante, deve levar o franchise ao colapso e ao abandono em um futuro não muito distante.

Ou, pelo menos, irá levar ao final o seu reinado como o “poderoso chefão” de Jornada, um cargo que caiu em seu colo quase por acidente após a aposentadoria de Gene Roddenberry (por problemas de saúde) e de Maurice Huxley (um ex-produtor de “Miami Vice” e criador dos Borgs, que queria mais ação na série e acabou em conflito com os “ideais” pacifistas de Roddenberry) em 1989.

Sozinho no comando e com a autonomia dada pelo estúdio, Berman contratou gente de talento, aumentou a audiência e a aceitação dos trekkies que torciam o nariz para uma Enterprise sem Kirk ou Spock, barateou os custos de produção da série e começou a dominar o franchise em todos os fronts: de produtor-executivo de A Nova Geração a partir do terceiro ano, passando por co-criador e produtor das séries Deep Space Nine e Voyager, e acabando com um contrato milionário como produtor e co-roterista dos últimos três filmes de cinema (um baita de um salário que ele espera continuar a receber ao assumir, no ano que vem, essas mesmas posições, no próximo filme e na nova série de TV).

Não se pode negar que Berman é a peça principal na transformação de Jornada, que passou de série cult e fenômeno pop à galinha de ovos de ouro da Paramount e principal fonte de renda do estúdio. Foi graças a Berman que talentos como Michael Piller, Jeri Taylor, Ron Moore, Ira Behr, Robert “Andromeda” Wolfe e Brannon Braga se juntaram ao franchise e a revitalizaram criativamente. Mas note que todos esses talentos acabaram por se desentender com Berman e abandonar Jornada e a Paramount, restando para titio Rick apenas a companhia do seu pupilo menos criativo, Brannon, apelidado por seus colegas de “Mini-Rick”.

Coloque a culpa em Xena e Arquivo-X, na super-exposição de Jornada na TV (quatro séries sendo reprisadas ao mesmo tempo, fora os episódios inéditos), na falta de popularidade da UPN ou simplesmente admita que os roteiros de Voyager não são mais nenhuma Brastemp.

De uns anos pra cá as coisas mudaram no galinheiro e a galinha está colocando cada vez menos ovos de ouro. Ou seja, a audiência despencou, as bilheterias não são mais as mesmas e até os trekkies mais fanáticos pelas novas gerações passaram a criticar os novos seriados, pedindo a cabeça de Berman numa bandeja de prata e uma mudança na equipe de produção da série (leia-se: uma volta dos talentos que se foram e não voltam mais).

Os mais saudosistas e afoitos pedem a volta de dois nomes que qualquer trekkie ou simples fã desavisado conhece: William Shatner e Leonard Nimoy. Justamente as duas últimas pessoas no mundo com quem Berman gostaria de fazer negócio –nem que a vida de Jornada (para não dizer seu salário) dependesse disso. Mas por quê? Essa, caro leitor, é uma longa história.

O ano era 1991 e parecia o começo de uma linda amizade: Leonard Nimoy produzia o último filme da série original no cinema, “Jornada nas Estrelas VI – A Terra Desconhecida“, enquanto Berman produzia o quinto ano de A Nova Geração, então no pico de sua popularidade.

Os dois, famosos e bem-sucedidos, acabaram por ficar amigos e fizeram uma parceria, no intuito de um ajudar no projeto do outro. Berman cedeu a Nimoy o ator Michael Dorn (ator que interpreta Worf) para uma participação especial no filme, que fazia diversas referências à nova série, e Nimoy cedeu a si mesmo e ao ator Mark Lenard (Sarek, que também estava no filme) a Berman, aparecendo como o embaixador Spock em dois episódios especiais, que por sua vez faziam diversas referências ao roteiro do filme, que estava prestes a estrear.

Ou seja, um ajudou a fazer propaganda do produto do outro, algo raro na época, já que Série Clássica e A Nova Geração até então permaneciam como entidades distintas uma da outra. A partir daí, referências aos personagens clássicos apareceram aos montes na Nova Geração (até James Doohan fez uma participação em um episódio do sexto ano chamado “Relics“) e até os personagens de Kirk e do embaixador Spock foram citados de forma importante e reverencial em diversos episódios da Nova Geração (“Face of the Enemy“, “Lower Decks“) e até de Deep Space Nine (“Crossover“).

Foi o começo de uma linda parceria entre as duas gerações de produtores, que, como tudo em Hollywood, não ia durar muito, acabando vítima dos egos e das maquinações que populam neste lugar mágico e fétido chamado Los Angeles. O que nos leva ao ano de 1993.

Chegou a vez de Berman produzir um filme de cinema de Jornada. Devido a essa simbiose que nesse ponto as duas séries (e seus respectivos produtores) já possuíam, Berman decidiu fazer um filme que incluísse o máximo de personagens da Série Original, criando assim uma transição da velha para a Nova Geração.

Esperto, ele chamou seu amigo Nimoy para dirigir o filme, além de lhe oferecer uma ponta como Spock nos primeiros quinze minutos. O resto dessa história todo mundo sabe: Nimoy leu o roteiro, não gostou de como os personagens da Série Clássica eram tratados como coadjuvantes, além de repudiar a maneira como Kirk morria no final. Resultado: ele deu de ombros a seu amigo Berman.

Na época, Nimoy deu em diversas entrevistas a desculpa de que não queria dirigir ou participar do filme porque o papel de Spock era pequeno demais e suas sugestões para a melhoria no roteiro não agradaram a Berman– conta outra, Spock! Em Jornada III ele topou aparecer só em um minuto e meio, em um filme cujo roteiro não era nenhuma obra-prima, mesmo assinado pelo talentoso Harve Bennett.

É logico que Nimoy não queria dar sugestões no roteiro de Moore e Braga, ele queria é reescrever a coisa toda. Como William Shatner conta em sua segunda autobiografia, “Jornada nas Estrelas – Memórias dos Filmes“, todas as suas sugestões –como o personagem de Antônia e o modo como Picard convence Kirk a sair do Nexus– foram aprovadas por Berman e seus roteristas. E todo mundo sabe que Shatner é bem menos diplomático que Nimoy.

Desesperado e com data marcada pra começar as filmagens (tendo que aproveitar os cenários da série de TV antes que eles fosses demolidos), Rick Berman (com a ajuda de Ron Moore e Brannon Braga) substituiu Spock e McCoy por Scotty e Chekov (na verdade, DeForest Kelley recusou a participação por problemas de saúde) e a direção foi entregue ao diretor da série de TV, David Carson.

O resultado todo mundo conhece: o filme “Jornada nas Estrelas – Generations“, amado pôr uns, odiado por outros (ok, eu adorei o filme, mas não olhe pra mim, eu não sou um trekkie).

Daí pra frente, a relação Berman/Nimoy foi se deteriorando a cada passo. Para o filme seguinte, até então chamado de “Jornada nas Estrelas – Ressurection” (mais tarde alterado para “First Contact“), Berman chamou Nimoy para o cargo de “consultor criativo” (algo que Roddenberry foi nos filmes, do II até o V), mas de novo Nimoy teve problemas com o roteiro e com a produção (dizem que Nimoy achou o tom do filme muito violento, não aprovou o uso dos Vulcanos no final e ainda queria de novo a inclusão de personagens da Série Clássica na história –o cara é teimoso).

Assim sendo, mais uma vez uma quase-parceria entre os dois veteranos produtores foi para o brejo. E para piorar a situação, com a aproximação dos 30 anos da série, Nimoy começou a criticar veementemente tanto Voyager quanto Deep Space Nine (e suas respectivas faltas de popularidade) na imprensa.

E parece que a falta de homenagens que a Série Clássica recebeu nesse aniversário irritou não só Nimoy mas também outros atores da série original, que achavam que parecia a festa dos 30 anos das novas séries e não da clássica, essa sim com 30 anos de idade.

Por isso, talvez, Nimoy também tenha resolvido furar com Berman em outras ocasiões: quando, em fevereiro de 1996, o ator (e trekkie) Jimmy Smitts (de “Nova York Contra o Crime” e “Star Wars – Episode 2“) entregou a Berman e a Majel Barrett Roddenberry, ao vivo na rede TNT, o premio Sindicato dos Atores pela comemoração dos 30 anos do “legado de Gene”, lá estavam no mesmo palco todo os elencos da Nova Geração, Deep Space Nine e Voyager (até Will “Wesley” Wheaton e Avery “Sisko” Brooks, aversos a esse tipo de coisa, compareceram).

Da Clássica estavam apenas George Takei (fazendo o sinal de “vida longa e próspera”, é logico), Nichelle Nichols e Walter Koenig. Em setembro do mesmo ano, no especial de gala “Star Trek 30 Years and Beyond” (disponível em vídeo nos EUA e exibido ao vivo pela UPN com apresentacao de –ugh!– Ted Danson), Nimoy foi o único ator das quarto séries (além de Patrick Stewart) a não comparecer na comemoração (mandando um recado ao vivo da França, recado esse que foi sabotado por interferência subespacial. Seria Berman?).

Depois de tanto “toma-lá-dá-cá”, era lógico que lá por 1998, Mr. Berman que já estava de saco cheio de Mr. Nimoy e nem queria ver suas orelhas, pontudas ou não. E Rick soube dar o troco.

Quando Nimoy criou uma empresa chamada “Alien Voices”, com o ator John de Lancie (Q) para a produção de vídeos e CDs usando os atores de Deep Space Nine e Voyager em dramatização de clássicos da ficção científica (além do CD especial “Spock Vs Q”), de repente, de Lancie, que até o momento fazia o papel de Q em aparições especiais em Voyager, nunca mais apareceu na série (ou em qualquer produção de Jornada, seja DS9 ou os filmes pra cinema).

Dizem as más linguas que Berman não gostou nada de de Lancie ter se tornado sócio de Nimoy, e resolveu boicotá-lo em Voyager. Agora, após passar cinco anos na geladeira, o personagem Q vai voltar, no sétimo ano de Voyager, em um episódio intitulado “Q Two” (falam por aí que o afastamento de Berman e Braga de Voyager e o novo regime imposto por Ken Biller tem algo a ver com o retorno de Q, ou melhor, de Lancie. Coincidência?)

E quanto ao boicote de Berman à pessoa de Nimoy (sem falar no personagem Spock), tudo ficou ainda mais claro em 1998, durante a última temporada de DS9: Ron Moore, fã de carteirinha da Série Clássica e um dos melhores (senão o melhor) roterista de DS9, resolveu escrever o último episódio da saga do “Mirror Universe” (que já havia rendido a DS9 quatro episódios passados naquele universo paralelo visto pela primeira vez no episodio “Mirror Mirror“, da Série Clássica) e convidou Nimoy a reprisar o papel do Spock de barba do universo alternativo, um final de ouro para mais uma das sagas de DS9.

Nimoy aprovou a idéia, o produtor-executivo Ira Behr aprovou a idéia e… Berman cancelou tudo, obrigando a equipe a terminar a saga com um episódio de Quark lidando com o Grande Nagus no universo paralelo. Uma grande decepção para Moore (que ventilou toda a sua frustração com Berman, com seu desdém pela Série Clássica, numa entrevista recente ao Fandom.com). No caso de Nimoy, foi o último prego no fim de sua relação com Berman.

Já no caso de Bill Shatner, a história do surgimento e do fim da amizade dos dois é muito mais simples. Durante as filmagens de Generations, Shatner (com medo de perder seu maior ganha-pão) bolou uma história em que Kirk era ressuscitado pelos Borgs e vinha se vingar do capitão Picard e da Federação. Shatner levou essa historia a Berman e o produtor disse ter gostado. Pediu que Shatner escrevesse um roteiro da história, o que foi a primeira coisa que Shatner deve ter feito ao voltar do deserto de Nevada, onde se filmou (duas vezes) a cena da morte de Kirk.

O ator contou, em uma entrevista que deu à revista “Cinescape”, que levou seu roteiro à Paramount e todos lá –de Berman a Sherry Lansing– gostaram da idéia e prometeram retornar um telefonema a Shatner logo que possível. Eu não preciso dizer que Bill está esperando esse telefonema até hoje.

Inconformado, Shatner se uniu aos super talentosos escritores Judith e Garfield Reeves-Stevens e adaptou as idéias do roteiro em uma série best seller de seis livros, que narram a saga de um capitão Kirk ressuscitado no século 24 e se unindo aos já centenários Spock e McCoy, junto com a tripulação da Enterprise-E.

Os livros foram um sucesso absoluto e são o pivô dos descontentamentos de Shatner com Berman. Parece que apesar de não querer adaptar os livros de Shatner para TV ou cinema, Berman é um tremendo fã de Bill, porque diversos elementos dos livros começaram a aparecer em episódios de Voyager e nos filmes da Nova Geração para cinema, fato que não passou em brancas nuvens para Shatner.

E antes que alguém soletre a palavra “plágio”, vamos dar uns exemplos. No episódio “Mortal Coil“, Neelix morre e é ressuscitado de uma maneira idêntica à de Kirk nos livros: através da inserção de nanossondas Borgs em suas corrente sangüínea e em seu cérebro.

Já em “Dark Frontier“, a cidadela espacial que a Rainha Borg usa como quartel-general dos Borgs é uma copia deslavada da descrição de Shatner do mundo Borg no quadrante Alfa em “O Retorno do Capitão Kirk” (“The Return“), o mesmo livro que Berman e a Paramount recusaram como o nono filme da série.

E como se tudo isso já não bastasse, vamos comparar o roteiro do primeiro livro de Shatner com o enredo do último filme da Nova Geração. Em “Star Trek – Ashes of Eden“, que Shatner (e os Reeves-Stevens, sejamos justos) escreveu em 1995, o capitão Kirk desobedece ordens da Frota Estelar e vai defender o planeta Chal, que guarda o segredo da juventude eterna, contra o comandante da Frota, o almirante Drake, que se uniu aos Klingons para tomar o planeta à força. Mas Kirk se une a Teilani, uma líder nativa do planeta por quem ele se apaixona (e com quem casa no quinto livro da saga). Teilani, apesar de aparentar ser bem mais nova, é bem mais velha que ele. Junto dela e de sua velha tripulação, Kirk derrota Drake e liberta Chal.

Em “Jornada nas Estrelas – Insurreição“, roterizado por Berman e Michael Piller em 1998, o capitão Picard desobedece ordens da Frota Estelar e vai defender o planeta Baku, que guarda o segredo da juventude eterna, contra o almirante Dougherty, que se uniu aos Son’a para tomar o planeta à força. Picard se une a Anij, uma líder dos Baku por quem ele se apaixona, que apesar de aparentar ser mais nova é bem mais velha que ele, e junto com sua tripulação, derrota os Son’a. Coincidência? Não para Shatner, já que em seu livro “Star Trek – Dark Victory“, lançado um ano após a estréia de “Insurreição“, Picard compara como essas duas missões foram bem… ahammm… similares. Pra quem conhece os livros de Shatner (e a maneira como ele trata o relacionamento Kirk/Picard), o recado de Bill estava bem dado.

E pra não perder o hábito, Shatner topou estrelar a comédia independente “Free Enterprise“, um filme divertido no qual ele, além de mais uma vez fazer o seu famoso discurso “get a life… it’s only a TV show” (dessa vez seriamente), aproveitou para dar um toque nos novos rumos do franchise. Uma das melhores cenas fica a cargo de um dos personagens principais, que grita para a namorada: “I fucking hate the next generation!!!

E a vingança final de Bill chegou este ano, em sua última biografia best seller, intitulada “Get A Life“. No último capítulo, ele critica o estado atual de Jornada e comenta ironicamente a tão falada decadência do franchise.

Por isso, apesar das várias campanhas para trazer Kirk, Spock ou Sulu, ou das preocupações dos trekkies com a recente falta de criatividade no franchise (que depois dos recentes rumores sobre Jornada X e a nova série parece ter aumentado consideravelmente), não contem em ver atores da Série Clássica na frente ou atrás das câmeras na comemoração dos 35 anos de Jornada em 2001. E não convidem as duplas Rick “Doctor Evil” Berman e Brannon “Mini-Rick” Braga pra mesma festa que Kirk e Spock.

Artigo originalmente publicado no conteúdo clássico do Trek Brasilis em 2000.