Luiz Castanheira analisa a estreia de Discovery

Nunca houve dúvida quanto à volta de Star Trek à televisão. Nunca se pensou em “se”, mas sim em “quando” isso aconteceria. Feito o anúncio oficial da nova série pela CBS e com a aproximação da data da sua estreia, a questão se transformou então em que tipo de Jornada nas Estrelas 2017 seria esse. Uma extensão meio que natural dos filmes do Universo Kelvin? Alguma outra modalidade de ruptura talvez inspirada no reboot de Battlestar Galactica? Ou algo “preservado em âmbar” similar à novata The Orville? A Star Trek Discovery que acabamos de conhecer não é nada disso felizmente e existe uma palpável emoção em vivenciar o retorno de Jornada nas Estrelas com uma produção moderna e sintonizada ao nosso presente. Como a sua protagonista em certo momento coloca para o seu pai adotivo: “Não é sobre o que aconteceu no passado. É sobre o que está acontecendo no agora.”

Existem proximidades estéticas com o universo dos filmes de Abrams e companhia, mas elas não servem às mesmas sensibilidades. O orçamento elevado não é inesperado e os valores de produção igualam ou superam qualquer coisa na televisão contemporânea, mas a visão, não tenham dúvidas, é definitivamente trekker de raiz. O piloto diz isso claramente. No primeiro ato da sua primeira parte existe uma nítida empolgação com a exploração do desconhecido (em meio ao incrível cenário de um sistema estelar binário) com um personagem júnior da ponte fazendo gracinhas com seus colegas e exibindo um sorriso aberto. No primeiro ato da segunda parte a própria direção do episódio parece desinteressada na batalha brutal que se inicia e o mesmo jovem tripulante, agora com uma grave concussão, confunde o caminho da enfermaria com o do xadrez, lamenta pela guerra, por ele ser um explorador e não um soldado, para logo em seguida ser lançado ao vácuo do espaço devido a uma ruptura do casco da nave. É detalhado demais para ser coincidência. É algo que definitivamente esperamos fazer parte da visão da série no que se segue.

O primeiro ato do primeiro episódio é longo e com andamento contido, funcionando quase que como a potencial introdução de uma história clássica de nave milenar abandonada e flui muito bem nesses termos. Destacam-se a camaradagem entre a tripulação da nave (sublinhando uma relação de pelo menos sete anos) e a demonstração de uma dinâmica de rivalidade fraternal entre a primeira-oficial e o oficial de ciências que promete dar o que falar. Conhecemos a nossa protagonista Michael Burnham (uma impecável Sonequa Martin-Green), aqui a primeira-oficial da nave estelar federada USS Shenzhou, no melhor da sua dinâmica heroica e autoconfiança (beirando a arrogância), chegando a brilhar como antropologista ao visitar sozinha a superfície do artefato milenar com um traje espacial auto propelido. Mas não era tão simples assim.

(#1 O oficial de ciências Saru (vivido pelo estupendo Doug Jones) promete ser um personagem bastante popular seguindo na tradição de outsiders de Jornada nas Estrelas como Spock, Data, Odo, EMH e Phlox.)

(#2 A titular nave Discovery não dá as caras nesse piloto, sendo introduzida na semana que vem, no terceiro episódio da série, juntamente com a maior parte do elenco regular da atração. E não param por ai as quebras de paradigmas.)

Ao encontrar na superfície da relíquia um guerreiro klingon e acidentalmente o matar (ao agir de forma apressada e imprudente), algo se desequilibra dentro da sua psiquê. Dando início a uma sequência de eventos que envolvem a destruição de toda uma frota de naves federadas (inclusive a sua), uma guerra declarada entre a Federação e o Império Klingon, a morte da sua mentora (oficial comandante da Shenzhou, Capitã Philippa Georgiou, vivida com graça por Michelle Yeoh) e a sua prisão perpétua pelo crime de motim contra a sua própria mentora.

(#3 Sim, esse é um piloto de Jornada nas Estrelas que termina com a protagonista presa pelo resto da vida por motim. E eu não estou brincando quanto a isso!)

Acontece que Burnham ainda criança viu seus pais serem mortos pelos klingons. Sarek (pai de Spock e aqui vivido por James Frain com a sua habitual e agradável dualidade vulcano-vampiresca) a tutelou desde então, reconstruindo seu corpo e mente à moda vulcana, mas foi incapaz de remover a profunda marca que esse trauma emocional deixou nela. Sete anos atrás, Burnham, já uma jovem adulta e graduada nas principais escolas de Vulcano, é deixada por Sarek aos cuidados de Georgiou, com expectativas de que a atitude da capitã, esperançosa em meio a dor e a perda fosse capaz de trazer uma paz definitiva ao coração de Burnham. A capitã julgava ter feito um bom trabalho nesse sentido, acreditando inclusive que Burnham já estava pronta para ter o seu próprio comando. Mas a capitã estava enganada… O treinamento vulcano não lhe ensinou a lidar com as suas emoções, mas simplesmente a disfarçá-las, dando a ilusão de controle associada a sua grande capacidade física e intelectual.

Por outro lado, o Klingon T’Kuvma, um fanático religioso e defensor da pureza da raça klingon e que acredita ser a reencarnação do lendário Khaless, havia preparado uma paciente armadilha para os Federados naquele exato setor do espaço. Danificar um relê de comunicação, esperar a vinda de uma nave da Frota Estelar para investigar, espreitar camuflado com a sua milenar nave sarcófago e, quando conseguisse a audiência adequada, convocar as naves representantes das vinte e quatro casas klingon, utilizando o artefato, o sagrado Farol Klingon. Ele objetivava reunir todas as casas em torno de uma causa única: frear a expansão da Federação.

Com os recursos disponíveis, T’Kuvma teria conseguido eventualmente iniciar um conflito com a Federação de uma forma ou de outra, mas Burnham colaborou em pelo menos duas instâncias aqui: (i) se assustando e matando acidentalmente o guerreiro klingon na superfície do Farol e (ii) principalmente matando intencionalmente o próprio T’Kuvma (após ele matar Georgiou), transformando-o em um mártir (algo que talvez ele até desejasse), praticamente garantindo uma guerra em grande escala entre as duas superpotências do quadrante (algo que ela própria anteviu e alertou a todos meros momentos antes).

(#4 Esses dois pontos são muito mais graves para o grande esquema das coisas do que o motim em si, pois o motim se baseou numa falsa presunção de que os klingons responderiam ultimamente de forma positiva a um ataque inicial por parte dos Federados. Mas isso era obviamente falso, pois era tudo o que T’Kuvma mais desejava. E foi isso que levou Burnham para uma corte marcial e para a prisão perpétua.)

Mais algumas pitadas:

– A pinça vulcana que Burnham usa para incapacitar Georgiou sublinha perfeitamente a gravidade do motim, trazendo mesmo um ar blasfemo aos procedimentos. Isso ganha uma rima ao final quando se torna impossível transportar o corpo da capitã de volta para nave, pela ausência de sinais vitais. Pontuando a absoluta ruína pessoal de Burnham;

– Os klingons de Discovery parecem trazer uma variedade bem vinda à espécie. Mas a complexidade da maquiagem prejudica a expressividade dos atores e a elaborada enunciação das falas no idioma klingon torna os procedimentos cansativos. Esperamos que tenha acontecido alguma depuração para o restante da temporada, especialmente se o ponto de vista klingon vier a ser apresentado com regularidade;

– Não nos parece até aqui que a violência e os temas adultos apresentados sejam muito distantes em termos de classificação indicativa em relação ao restante da franquia;

– Reboot ou não reboot: até que algo torne completamente insustentável a negação (oficial) de um reboot, trabalharemos com essa hipótese. Mas ser um reboot formal não nos assusta nem nos afasta da atração;

– Época: A época parece afeita a uma eventual atualização da Série Clássica de Jornada nas Estrelas na sequência, não vemos muito além disso (ao menos por enquanto). Outra época (por exemplo, pós Nêmesis) poderia ser utilizada para contar uma história equivalente, talvez sem os klingons e com outros alienígenas no lugar;

– Sarek I: Ainda não está clara a necessidade de ser Sarek o guardião de Burnham ao invés de um vulcano de equivalente estatura;

– Sarek II: Sarek teve três tipos de interações com Burnham no piloto: (i) duas via flashback. (ii) Uma via comunicação subespacial que esperamos que não mais ocorra em meio à ação (especialmente para obter uma informação que poderia ter sido obtida facilmente por outros meios). (iii) Uma via o Katra de Sarek sendo compartilhado pelos dois, algo que esperamos que não seja abusado;

– Cânone visual: não nos preocupa;

– Cânone tecnológico: Até que algo consiga realmente invalidar a premissa de algum episódio posterior na cronologia não objetaremos. Dois exemplos: (i) campos de força sempre existiram em Jornada por necessidade prática recaindo no caso anterior. (ii) A ausência de hologramas (em plena vista) por anos foi uma opção estilística tradicional da franquia e sendo obviamente algo dentro do alcance de uma civilização que domina tecnologias como replicadores, teletransportes e motores de dobra, assim também recaindo no caso anterior.

– Restante do cânone factual: bastante esparso para o período. Consideraremos caso a caso quando ocorrerem situações relevantes;

– Esperamos mais informações (em flashbacks ou não) sobre T’Kuvma, a nave sarcófago, o Farol Klingon, Georgiou, Sarek e generalidades sobre o passado de Burnham nos episódios vindouros;

– Camuflagem em Discovery parece ser novidade para todo mundo exceto para a turma de T’Kuvma;

– Quem achou tediosa a forma como T’Kuvma apresentou o seu argumento de pureza racial e de como ela é ameaçada pela expansão Federada, confiram a já clássica conversa (aquela “da Root Beer”) entre Quark e Garak em The Way Of The Warrior e o discurso final de Eddington em For The Cause, ambos episódios da quarta temporada de DS9;

– As naves Federadas e Klingons parecem chegar rápido demais ao local do conflito. Um defeito recorrente na franquia;

– Aparentemente Discovery mantém a tradição trekker de almirantes almofadinhas e inúteis (beirando a metalinguagem). O almirante Anderson, da sua proposta de cessar fogo até ser literalmente esmagado por T’Kuvma, sobrevive uns trinta segundos;

– Enviar capitão e primeiro oficial em uma missão suicida também é uma infame tradição de Jornada nas Estrelas. Isso serviu bem a história que se desejava contar aqui. Mas o absurdo de trama é óbvio.

Discovery, ao menos nessa primeira temporada, deve ter como base a redenção de Burnham, alguém com imenso potencial, com inúmeros defeitos e traumas, alguém muito humana. Esperamos uma série bastante diferente das demais, utilizando valores de produção modernos, ferramentas dramatúrgicas modernas, ousadia progressista, personalidade própria e visão consistente. Enfim, aguardamos uma Jornada nas Estrelas para os nossos tempos.

“Não se importe com a sua vergonha. Junte as suas forças e encontre um jeito de ajudar quem precisa.”

STAR TREK DISCOVERY

EPISÓDIO 01×01 THE VULCAN HELLO

EPISÓDIO 01×02 BATTLE AT THE BINARY STARS

GRAU CONJUNTO: B (3/4)