Luiz Castanheira analisa “Choose Your Pain”

[CONTÉM SPOILERS] Este aqui parece feito de traz para frente. Um primeiro comando para Saru sendo possível pelo aprisionamento de Lorca. Não surpreendentemente, a primeira história funciona melhor em termos de caracterização e trama do que a segunda que ainda recebe o ônus adicional das limitações envolvendo o tratamento do lado Klingon da atração em geral até aqui. Saru emerge o mais interessante do quarteto científico de Discovery, um grupo que começa a dar liga. Isso tudo em meio a pelo menos duas primeiras vezes na franquia, uma bela despedida e uma cena final que nos faz pensar em deixar crescer o cavanhaque para o que em breve virá.

A história secundária é tão envolta em desconfianças plantadas pelo roteiro e potencializadas por escolhas na decupagem e na montagem, que fica por vezes até difícil apontar categoricamente um furo de trama onde pode muito bem ter havido um elemento de espionagem, de subterfúgio ou de manipulação. Será que foi do começo ao fim um esforço Klingon para especificamente raptar Lorca por motivos óbvios ou ocorreu uma mudança de planos por influência da participação de Mudd? Existe um componente de espionagem no lado Federado para conceber e (ou) facilitar tal rapto? Será o Tenente Ash Tyler (Shazad Latif, o último do elenco regular a aparecer na série) de alguma forma um espião Klingon ou mesmo o próprio Voq disfarçado? Será Lorca tal espião?

(Existem outros pontos de trama discutíveis aqui incluindo ainda a já famigerada direção de arte Klingon, mas mencionemos algo mais relevante: Não existe clareza e disciplina na apresentação de uma história com os aludidos contornos, as esquisitices e desconfianças parecem abundar para cobrir falhas narrativas, para nos confundir e não para nos intrigar e nos manter alertas, como deveria ser o caso.)

A história principal funciona como a sequência do terceiro episódio para Saru, com ele agindo de uma forma em que se nega a ser incapaz de proteger o seu capitão, como Burnham foi. E o que torna tudo mais difícil é que ele tem que bater de frente com Burnham e o quanto isso traz as suas inseguranças a tona. Mesmo com o comprovado sofrimento e os indícios de senciência do Tardígrado, ele se recusa (assumindo total responsabilidade sobre a missão) a parar de usar o motor de esporos no resgate a Lorca. Notem, entretanto, que ao ter Lorca e Tyler finalmente a bordo, ele ordena que Burnham liberte o Ripper antes que Lorca possa dizer o contrário. Saru admitir em voz alta os seus mundanos sentimentos (raiva, ciúmes etc) com relação a Burnham foi um importante momento para que ambos possam de fato seguir em frente.

E Stamets continua progredindo de forma bastante agradável e funcional, desde que não tenha que tratar diretamente com Lorca aparentemente. Acabou lidando com Burnham melhor do que o contrário, agora possui DNA do Tardígrado e é capaz de realizar saltos como navegador da Discovery, é metade do primeiro casal homoafetivo da franquia e parece que esta prestes a dar um pulinho do outro lado do espelho. Entre o autossacrifício (por nave e tripulação) e a tentação de se tornar um com a rede dos esporos, acreditamos que ele pensou em uma combinação de ambos em boa medida antes de se injetar com o tratamento desenvolvido. Nada mal para três episódios!

Mais algumas pitadas:

Lorca no (s) próximo (s) episódio (s) deve: (i) Autenticar de toda forma possível e imaginável o Tenente Tyler. (ii) Ter um “papinho sério” com Saru (será então o primeiro da série no gênero, algo já bastante atrasado por falar nisso) pelo menos sobre a liberação do Ripper. (iii) Explicar ao Almirantado que os seus mirabolantes planos para com os Tardígrados vão ter que ser “um pouco alterados”.

O incidente em que Lorca provocou a morte de sua tripulação anterior (será que de fato intencionalmente?) deve ser tratado na sequência da série (inclusive a sua extrema foto sensitividade ali adquirida, que ele mantém como um tipo de autoflagelação). Mudd sabe do ocorrido uma vez que os Klingons sabem, aparentemente;

Saru deveria ter dito “Computer, delete the entire protocol!” e nada mais;

Tilly é o primeiro personagem a dizer Fuck na história de Jornada nas Estrelas, Stamets é o segundo. A fala foi usada como alívio cômico para a maçante cena expositiva envolvendo os dois, Burnham e muitos esporos. Em contexto, traduz naturalmente a excitação da personagem com a possibilidade de capacitar outro ser vivo senciente como navegador da Discovery em sua manobras de salto. Stamets repete simpaticamente e igualmente excitado;

Stamets e o médico Hugh Culber (Wilson Cruz) formam o primeiro casal gay da história de Jornada e a sua primeira cena fora do ambiente de trabalho agradou muito. Cruz interpretou o primeiro personagem regular gay de toda a história da TV Americana (Rickie Vasquez de My So-Called Life em 1994). O ator é homossexual assumido e tem sido ativista de causas LGBT por toda a sua carreira profissional;

A cena final no espelho do quarto de Stamets foi intrigante e surpreendente, mesmo com conhecimento de spoilers de episódios que virão. Será que essa eventual “Ida ao Universo do Espelho” se justificará em si mesma e em meio a guerra?

Mudd traz à memória um personagem medíocre e datado. Dificilmente pensaríamos nele como alguém que merecesse um aproveitamento destacado em Discovery. A caracterização foi ajustada de acordo, trazendo o patético e enrolado vigarista de outrora para série com tintas um pouco mais fortes. Mudd até que cumpre bem a função (um tanto genérica) dentro do segmento, mas não vemos como continuar com novas participações (ao menos não com o pouco que nos foi apresentado aqui);

Discovery tem ambições narrativas compatíveis com uma série pós-revolução, mas ainda faltam ajustes finos para atingir real grandeza. Por hora dois pontos: (i) Os diálogos têm que melhorar, ganhar sutilezas, dinâmicas e parecer menos (em algumas situações) com “Monólogos descarregados de maneira alternada” (R). (ii) Discovery depende muito de elipses temporais para manter a propulsão de sua narrativa. No roteiro, na filmagem ou na montagem tais decisões são tomadas com esse propósito. Mas tem que tomar mais cuidado com a aplicação de tal técnica para que ela nunca seja confundida com desleixo ou mesmo falta de uma clara visão criativa.

Discovery permanece uma série pulsante de Jornada nas Estrelas, mas apresenta problemas com o lado Klingon da sua equação assim como falta certo refinamento dramatúrgico para galgar um nível de excelência. Os personagens parecem bem delineadas para este momento na série e um senso familial começa a surgir. Preservando a continuidade da narrativa, tais ajustes devem ocorrer com naturalidade. Permanecemos otimistas. E a despedida do Ripper foi legal pra c*****…

Star Trek Discovery

EP01x05 Choose Your Pain

Grau: B+ (3/4)