Luiz Castanheira fala sobre “Lethe”

Discovery comete o seu melhor segmento até aqui, com foco em um momento esclarecedor para a pessoa de Burnham (e para a história de Jornada nas Estrelas) e com um Lorca que se torna mais complexo a cada instante. A existência de um movimento vulcano de purismo lógico (e/ou de secessão federada) se alinha perfeitamente com os postulados klingon de T’Kuvma, ampliando a coesão temática (e as possibilidades de história) e justificando naturalmente a centralidade de Sarek na série.

Existe um exercício interessante de roteirização em olhar para ao cânone de Jornada nas Estrelas e pensar em responder a alguma questão fundamental, em expandi-lo, mesmo criando algo nunca antes mencionado ou o observando sob um ângulo nunca antes utilizado (aliás, questão bastante em voga com o advento do filme Blade Runner 2049). Exemplo: Kirk ter tido um relacionamento fracassado com Carol Marcus e um filho com ela. Em Discovery, Burnham é (também) uma sonda dramatúrgica que busca inspecionar e esclarecer questões relativas (entre outras) ao núcleo familiar de Sarek, Amanda e Spock. Se o inusitado de tal premissa sempre choca, por mais mentes abertas que sejamos, os dividendos dramáticos aqui recolhidos mais do que justificam tal escolha.

Existem suficientes insanidades relacionadas ao conceito de Katra em Jornada nas Estrelas para justificar o que vimos aqui e acreditamos ainda (e em geral) que virtualmente qualquer problema de trama deve ser sempre ponderado com o que ele permite dramaticamente. Sarek pode até um dia ter pensado em Burnham como um experimento, mas esse não é o caso faz muito tempo. A decisão lógica seria que Burnham ingressasse naquele momento (de sua formatura com honras) na Força Expedicionária Vulcana, algo líquido e certo (e por méritos de uma vida extremamente dura em todos os sentidos até ali) e que Spock tivesse o seu futuro definido um pouco mais para frente (inclusive com possíveis mudanças políticas na equação). Ao invés disso, escolheu “seu sangue” e mentiu para acobertar sua escolha e quebrou sua cara com Spock na sequência. Vergonha de fato! Indo além, acreditamos que outras histórias desse núcleo familiar possam surgir futuramente de forma similar. Por exemplo, existe (em algum lugar) a história potencialmente mais sombria e adulta de todas, aquela que envolve o lado de Amanda da coisa toda. Como é para uma humana amar um vulcano pleno e com ele se casar e ter prole? Burnham só oferece a ponta do iceberg.

(Como o progressivismo de Sarek incomoda o Status Quo Vulcano… Chamar a família de Sarek de “experimentos” é incrivelmente racista. Até que ponto o movimento dos Puristas Lógicos está de fato espalhado pela sociedade vulcana?)

Lorca é sem dúvidas um personagem extremamente complexo e que parece estar sempre um passo a frente em cada situação. Parece é a palavra-chave aqui para torná-lo tão interessante quanto ele de fato é. Seus talentos maquiavélicos são temperados a contento com os seus traumas de guerra. Ele literalmente atropela as ordens de um almirante vulcano para resgatar Sarek e vai para cama com outra almirante para preservar a sua posição a bordo da Discovery, onde os seus fantasmas de combate quase põem tudo a perder. O acaso (ou os roteiristas) oferecem uma “solução” para Lorca com a almirante Cornwell ocupando a vaga de Sarek na urgente missão diplomática klingon (sem ter tempo hábil para promover a substituição de Lorca no comando da Discovery). A prisão da almirante por Kol e cia. é reportada por Saru que estranha a posição de Lorca que (indo de encontro ao seu padrão de comando NO PRÓPRIO EPISÓDIO!) ordena que esperem por ordens do comando para montar ou não uma missão de resgate. Acreditamos que Lorca tenha sim ganhado tempo com tal reviravolta, mas, por outro lado, ele não tinha como obrigar Cornwell a assumir a missão em primeiro lugar (e nem prever que a missão falha-se tão miseravelmente). E genuinamente pensa na amiga ao final, esperançoso que um dia possa resgatá-la, porém com o seu feiser a mostra, nos fazendo lembrar que estamos falando de alguém profundamente traumatizado, talvez beirando a perda de funcionalidade.

Mais algumas pitadas:

── Patrulha de continuidade: Lorca não falou com Saru sobre a sua liberação do Tardígrado (aliás, ele não falou ainda com Saru sobre algo que não seja orientado a trama), não ficou claro que tipos de exames sofreu Ash Tyler para ser declarado apto ao trabalho, não ficou clara a posição do almirantado em relação a eugenia de Stamets. Parte disso foi colocado de forma fraca na boca da almirante Cornwell, mas parece que parte do potencial dramático se foi. Vamos observar agora a sequência dos episódios e toda a questão da nave e tripulação anteriores de Lorca;

── Será que Lorca está dando uma de Michael Corleone para cima de Ash Tyler, trazendo os inimigos ainda mais perto do que os amigos por assim dizer?

── Ficamos com a impressão de que Stamets estava intoxicado com os seus agora parceiros cogumelos (incluindo palavras com duplo significado e uma vibe sessentista psicodélica). Ou seria um bem-humorado indicador de que algo muito mais sinistro está acontecendo com o personagem? Aliás, com duplos em abundância, Lewis Carroll e coisas sinistras com espelhos (inclusive no presente episódio), qualquer fã que se preze já sabe para onde vamos;

(Será que todos os elementos de história da primeira temporada foram apresentados nos cinco primeiros episódios?)

── O engenho holográfico de treinamento (em que Lorca e Tyler praticam) está demasiado aquém das salas mágicas que chamamos de holodecks na Jornada nas Estrelas do século 24. Mas cenas como essa (a do mencionado treino de Lorca e Tyler), a corrida de Tilly e Burnham e o Vulcan Fu de Sarek e Burnham servem para agilizar o episódio, sendo dramaticamente eficientes em seus termos e emprestam um caráter mais cinemático aos procedimentos;

── Notem como a Burnham que tenta posar como mentora de Tilly na corrida das duas, lembra a Burnham do primeiro episódio e após passar por toda a situação com Sarek diz simplesmente a amiga para escolher o seu próprio caminho. O que a maravilhosa Sylvia F. Tilly responde que já fez;

── O interesse de Lorca por Burnham é fortemente sublinhado aqui (Quando virá a recompensa dessa pista? Será que ele a prepara para assumir o comando da nave se ele for incapacitado?). Sob o ponto de vista de Burnham, gratidão e até admiração são esperados com relação a Lorca, o que também não impede um conflito futuro entre os dois já que ela deixou claro de saída a sua posição no espectro da ética;

── Será que a personagem de Burnham foi de alguma forma inspirada na figura do Spock do futuro no episódio Yesteryear da Série Animada?

── É praticamente certo que Voq e Tyler sejam a mesma pessoa e que Tyler (que parece até lutar como um klingon) não saiba que é Voq. Esperamos que o interesse dos realizadores não seja na reviravolta em si (que inevitavelmente virá) mas no drama e pathos que pode ser extraído da situação. Tyler entra na série de maneira simpática, competente e acessível e parece se aproximar de Burnham… Parece ser um bom caminho no que imaginamos. Aliás, Martin-Green destrói na sua última cena com Tyler. Difícil não ficar interessado nela, sendo humano ou klingon.

Discovery dá um salto de qualidade com Lethe, responde uma clássica pergunta da franquia existente desde “Journey To Babel” da série original ao mesmo tempo que cria inúmeras outras questões. Parece um ponto de virada para Burnham e estabelece Lorca como o mais complexo do bando e Tilly como o seu coração.

Star Trek Discovery

EP 01×06 Lethe

Grau: A- (4/4)