Reflexões e reflexões sobre uma quadrilogia do Espelho

PRÓLOGO: Inicialmente entendida como uma jornada de redenção para uma desgraçada Burnham tendo como pano de fundo uma guerra entre Federados e Klingons, a primeira temporada de Discovery mostrou de fato um diferente eixo de alvos temáticos e narrativos. Interessada em como nos percebemos (nos projetamos) e em como os outros nos percebem (nos refletem), a série desfilou e sublinhou duplos, reflexos, Lewis Carrol e bizarrices (via Stamets) que simplesmente gritavam UNIVERSO DO ESPELHO ou algum equivalente ($). A participação de Mudd na atração se mostrou inofensiva e secundária (ainda que devesse ter sido substituída por material mais relevante), mas uma incursão ao caótico universo alternativo introduzido no clássico “Mirror, Mirror” (onde basicamente nada faz muito sentido), com a centralidade e importância mencionadas acima, parecia uma temeridade. E isso sem sabermos ainda que seriam excessivos quatro episódios no total do lado de lá e que tínhamos um capitão espelhado no comando da nave desde o terceiro episódio (totalizando onze episódios nessa situação ao final da quadrilogia). Foi melhor do que o desastre antecipado, mas apenas passável na maior parte do tempo e acabou por piorar os sete episódios anteriores, infelizmente. Seguem impressões sobre esses quatro segmentos e sobre o arco do Lorca do Espelho.

($) Para um universo equivalente, infinitamente mais sedado e interessante do que o Universo do Espelho de Jornada nas Estrelas, podemos citar o da trama da nova série Counterpart (do canal Starz).

Despite Yourself I (avaliação:): O melhor do lote, com ótimo andamento e visualmente interessante, uma cortesia da direção segura de Jonathan Frakes. Pontos fortes: Capitã Killy, Lorca como um Engenheiro Escocês, toda a transformação da Discovery e da sua tripulação nas suas contrapartes do Universo do Espelho e alguns bons momentos intimistas dos personagens a bordo da nave titular. O plano de Burnham e Lorca parece ter estatura compatível com o espírito do Universo do Espelho e o enfrentamento com o Connor Espelhado foi uma sacada inspirada para colocar Burnham no “Espírito do Espelho”. A complacência de Burnham e Culber para com Tyler incomodam (especialmente em meio as circunstâncias do episódio) e a falta de uma coleta de lixo ($$) após a morte do Doutor (algo que aparentemente nunca virá) fere o segmento e a temporada como um todo (notando ainda que o próprio roteiro parece preparar um caminho para a absolvição/perdão do Tenente). Observem como Tyler: mata Culber, chega atrasado na sala de transporte com uma desculpa esfarrapada e rapidamente já está na cama com Burnham. É uma sequência extremamente bizarra. Parece Star Trek: Dallas.

($$) Colocar tudo nas facilidades da posição de Tyler como Chefe de Segurança não funciona e a falta de uma intervenção direta de Lorca na deteriorante situação do Tenente também não funciona em retrospectiva. Para falar a verdade, ficou faltando também (e é algo que agora nunca virá) um algo mais na insistência de Lorca em ter Tyler como Chefe de Segurança da Discovery em primeiro lugar.

The Wolf Inside II (avaliação:): Direção não tão boa com elementos mal resolvidos. Pontos fortes: A narrativa inicial de Burnham que deságua na sua primeira conversa com Tyler no segmento, o Saru do Espelho e a engenhosidade da nossa protagonista em entregar os arquivos da Defiant (arquivos esses que acabam sendo irrelevantes para todo o arco, por falar nisso) e o Chefe de Segurança ainda vivo (no melhor espírito de Jornada nas Estrelas por assim dizer). A tripulação da Discovery parece também ganhar mais confiança, especialmente o Saru de Doug Jones. Por outro lado, a falta de um Engenheiro Chefe, a falta de um Médico Chefe e o excessivo escopo de atuação de Tilly inclusive junto a Saru não funcionam muito bem (isso sem falar na barragem de tecno-baboseira nos esforços para acordar Stamets). Confusão também na sequência de morte/ressurreição do navegador, basicamente um dos maiores clichês do drama médico e que é pifiamente executado aqui. Entretanto a aparição do Stamets Espelhado deu algum ânimo aos procedimentos.

Burnham, já em uma precária posição comandando a Mirror ISS Shenzhou (e com a Discovery e quem sabe a própria Federação dependendo da sua missão a bordo), arrisca ao extremo desobedecendo uma ordem direta da Imperatriz. A contrapartida de uma missão de misericórdia ou mesmo de uma que procurasse obter uma maneira eficiente de dialogar com os Klingons do Universo Prime parece irrelevante diante disso tudo. Incluindo aí o risco absurdo da infiltração em si (afinal a Burnham do Espelho é a filha da bendita Imperatriz!) composto ainda com um instável Tyler caindo no pau com o líder da resistência (e não estamos brincando quanto a isso!). Temos então uma trama que simplesmente não se sustenta. A presença do Sarek do Espelho parece concebida pelos realizadores para tentar mitigar tais deficiências, mas sem sucesso.

(Aliás, depois de Burnham assassinar o Connor Espelhado, todo esse seu cuidado com os rebeldes parece sem sentido.)

(Parece que o encontro de Tyler com Fire Wolf/Voq do Espelho foi concebido e a trama foi então contorcida de trás para frente para que isso pudesse acontecer. Algo que já podemos elencar como uma característica de Discovery até aqui. Algo que tem que melhorar.)

(Discutiremos melhor a questão Voq / Tyler / L´Rell após o último episódio da temporada. Mas fica já claro que alguns pontos de trama bem específicos foram plantados com algum propósito futuro. Não que a mecânica do salvamento de Tyler pela Discovery tenha sido a coisa mais simples de engolir em termos de trama, obviamente.)

(A cena final com a “nave invisível” foi desnecessariamente confusa. A presença de uma “Imperatriz Georgiou” era meio que inevitável neste ponto.)

(E por falar naquela nota de continuidade que te faz revirar os olhos: notaram a maior sensibilidade a luz da tripulação da ponte da Mirror Shenzhou quando comparada à da Michael?)

(Parece existir em algum lugar uma versão melhor do episódio que segue a narrativa da Michael do começo ao fim e exclui a trama na superfície do planeta.)

Vaulting Ambition III (avaliação:): Curto e ágil, o segmento não decepciona. Ao contrário de Lorca, Stamets, Voq e de seu título, o episódio é pouco ambicioso, mas entrega o que promete. Entendemos que a pura personalidade de Voq foi destruída com o procedimento e que isso NÃO impossibilita o surgimento de um amálgama Voq/Tyler no futuro (tal ponto funciona dramaticamente melhor do que esperávamos). Stamets parece interagir com algum construto da união da sua mente inconsciente com a Rede Micelial, fazendo as pazes com a perda de Culber (algo que emocionalmente funciona direitinho, talvez a melhor coisa de toda essa Quadrilogia do Espelho, mas a forma com que as informações são passadas para Stamets revela uma carpintaria dramática bastante pedestre). A revelação do Lorca do Espelho é muito bem feita com uma ótima montagem, num crescendo entre dois cenários diferentes. A mecânica de tal trama funciona retrospectivamente ao longo da temporada (ainda que com uma óbvia ajuda do “destino” ou da mão dos roteiristas, dependendo da inclinação de cada espectador), mas parece parar por ai nos seus méritos (ver comentário ao final do presente artigo). Saru e companhia continuam crescendo positivamente a bordo da Discovery, o que atinge um clímax natural no episódio seguinte.

(Como o Stamets Espelhado foi parar dentro da rede micelial? Como o seu corpo comatoso está abandonado em uma enfermaria? Enfermarias vazias são alguma constante entre universos?)

(Bastou oferecer um “Cozido de Saru” para a Imperatriz descobrir o disfarce da nossa Burnham. Nada como um “prato exótico” para soltar a língua dos convidados.)

(A “Mágica com DNA” tradicional de Jornada nas Estrelas ganhou aqui um novo significado bastante horripilante nas mãos do Maddox do Espelho.)

(Continuamos sem saber de onde saiu essa tal “sensibilidade a luz”. Quem foi que pensou isso?)

What’s Past is Prologue IV (avaliação:): A parte a bordo da Discovery é a melhor coisa do episódio, com a tripulação se unindo longe da esfera de influência do Lorca do Espelho (o discurso do Saru é muito legal, por falar nisso). Infelizmente, o nível de tecno baboseira ali usado é atroz, a ameaça de destruição de todo o multiverso é absurda demais e a insólita discussão sobre sustentabilidade beira a piada involuntária. A bordo da nave da Imperatriz, as coisas seguem como uma cansativa space opera entre paredes: a fuga de Burnham, os seguidores do Lorca Espelhado que permanecem vivos (a bordo, leais e prontos para lutar mesmo após mais de 18 meses de intensa tortura), Lorca Espelhado prometendo ser um tirano sanguinário ainda maior do que a atual tirana sanguinária (com direito até a um infame: “Vamos fazer o Império grande novamente!”), a “rendição” de Michael e da Imperatriz, a “traição” de Michael e da Imperatriz, os escudos inexistentes da Charon, o Lorca Espelhado dando uma espadada na Landry Espelhada, Burnham como a bizarra “falha fatal” do Lorca Espelhado etc.

(O desesperado uso de clichês de ação e de space opera tradicionais abundaram aqui. Esperamos que eles tirem umas boas férias da série.)

(O uso metafísico/espiritual da Rede Micelial carece de mais especificidade. Isso e o esporo verde que pousou no ombro da Tilly vão servir de base para uma eventual segunda temporada?)

(Por que os gânglios do Saru nunca funcionaram com o Lorca Espelhado? Aliás alguém sabe como essas coisas funcionam? Isso desqualifica o discurso dele de alguma forma?)

(A ida do Lorca do Espelho para o Universo Prime segue a receita do episódio original “Mirror, Mirror”. O que parece selar o destino do Lorca do Universo Prime. Será que ele está mesmo morto?)

ARCO DO LORCA DO ESPELHO (avaliação:): Em meio a onda pós-revolução televisiva, que transformou em lugar-comum a figura do anti-herói masculino, recebemos naturalmente a caracterização inicial de Lorca em termos de: um especialista militar (algo que nunca tivemos na franquia mas que não contradiz nada na mesma), um especialista militar em tempo de guerra sendo pressionado ao limite humano para tornar funcional a maior esperança de defesa Federada e entregar resultados maiúsculos com ela, alguém repleto de ambiguidades e maquiavelismos (e transtornos de personalidade envolvendo aprisionamento e tortura). De fato um personagem bem interessante (e muito bem atuado por Jason Isaacs). Ficamos então empolgados com a possibilidade de Discovery realmente testar os limites éticos de um Capitão Federado em tempos de crise e ao mesmo tempo brincar com os parâmetros já estabelecidos (brincar com a percepção da audiência sobre a coisa toda). A impressão de alguns fãs foi imediata: “- Ele tem que ser do Universo do Espelho!”. Sempre achamos essa noção por demais reducionista, já que Capitães da franquia (regulares ou não) já testaram os limites éticos da mesma no passado. Sisko e Archer, por exemplo. A realização dessa “Profecia Rasteira” nos pegou desprevenidos e nos causou frustração, como descrevemos nos seguintes três tópicos:

(I) MECÂNICA: É o aspecto que melhor funciona, desde que não pensemos em eventos vastamente fora do controle do Lorca Espelhado, como a Guerra Klingon e a prisão de Burnham. A trajetória de comando dele da Buran até a Discovery também parece pouco crível se julgarmos a história de Mudd pelo valor de face (esperávamos que isso fosse ser revisitado mas nunca foi). O arco também parece desequilibrado metricamente, com a revelação ocorrendo no final do décimo episódio e o desfecho em um único episódio com a morte apressada do personagem [NEUTRO].

(II) TEMÁTICA: O Lorca Espelhado representa “algum Trump” que foi “eleito” para resolver uma “crise” e que se revelou “um mal maior” do que o “mal” que deveria “combater”. Representa “alguém de fora do sistema”… Representa alguém que se diz “predestinado”… Representa a xenofobia no mais alto grau… etc. Considerando o que vimos em tela e as entrevistas de diversos produtores, essa interpretação do personagem parece bem correta. Star Trek cumprindo sua função de crítica social, conectada ao presente, apesar da sutileza de uma manada de mastodontes em fúria. Ficam meio órfãos nisso tudo aqueles fãs que simpatizaram com a percepção inicial do personagem dada acima e que possuem um viés político atento a metáfora apresentada [NEUTRO].

(III) RETROSPECTIVA: O tocante no final de Sixth Sense não está em descobrirmos surpreendentemente que o personagem de Bruce Willis está morto, mas está sim na tragédia DELE descobrir que está. Ao revermos os onze episódios do Lorca Espelhado na série, encontraremos um mentiroso absoluto, um habilíssimo manipulador, um egoísta em escala multiversal, um compartimentalizador mental que beira o ridículo etc. Mas o autor e (curiosamente) também o fã que gritou “- Espelhado!” lá atrás não vão encontrar traição ou tragédia… Não vão encontrar o drama necessário para elevar a reviravolta além do truque… Vão encontrar sim um boneco de trama que traz vacuidade e fragilidade aos episódios mencionados [NEGATIVO].