O TEMPO AINDA estava enfarruscado, mas pelo menos o vento amainara e a chuva dera uma trégua naquela manhã, embora não se pudesse dizer o mesmo do frio.  Neeska providenciou uma reduzida refeição matinal com as rações que conseguira pegar dos destroços do veículo transportador.

“Rações Cardassianas... Se não estivesse tão faminta passaria muito bem sem elas!” – pensou, fazendo cara de asco enquanto usava o feiser para esquentar um pouco de fasrushss[1].

Anarys não se dera conta de que era observada há algum tempo pelo tulgryn.

- Já acordado? – perguntou, ao perceber que era objeto da atenção do Cardassiano, voltando em seguida a cuidar da sopa que exalava um odor desagradável demais para seu gosto.

- O aroma da refeição me despertou.

- Por que será que não me surpreendo?

- Estou faminto.

- Aceito isto como uma melhora em seu quadro clínico.  Como passou a noite? – indagou com interesse médico, decidindo que o caldo ainda não se encontrava quente o bastante.

- Bem. Agradavelmente aquecido, eu diria – respondeu tentando ajeitar-se melhor debaixo das cobertas para em seguida começar seu jogo favorito, o de irritar a mulher.

- Espero que a recíproca seja verdadeira apesar do mal-entendido da noite passada.

Neeska olhou por cima do ombro na direção de seu interlocutor sacudindo levemente a cabeça, prometendo a si mesma que se esforçaria para não se deixar levar por suas provocações.  Ajudou-o a sentar-se e aproveitou para ministrar-lhe o dermogel nas queimaduras, principalmente nas costas e braços, sem se descuidar de mantê-lo aquecido. Trocou os curativos do peito bem como o da garganta, onde fora feita a traqueotomia.  Por todo o processo medicamentoso era sempre acompanhada pelo olhar atento de um Dukat surpreendentemente passivo e quieto.

Tinha que admitir que a recuperação de seu paciente progredia a passos largos. Aliás, isso não a surpreendia; por experiência sabia que era coisa comum entre Cardassianos saudáveis. Como gostaria de ter podido aprofundar seus conhecimentos em xenofisiologia. Mas com a ocupação de Bajor isso se tornara impossível.  Toda e qualquer informação requerida por Bajorianos passava pelo crivo de seus opressores. A burocracia proposital era tamanha que desanimava qualquer um.

Retornou com o desjejum e observava silenciosamente o Cardassiano saborear com grande satisfação a sopa quente. 

- Não sei como conseguem ingerir isto! – disse girando o caldo dentro da sua própria caneca, procurando retardar o inevitável.

Após sorver mais um gole da sopa, Dukat se manifestou.

- Admito que qualquer alimento transformado em ração perde muito suas propriedades degustativas, tornando-se intragável para a maioria, mas tudo é uma questão de costume.

- Ou necessidade – entornou goela abaixo de uma só vez a sopa sob o olhar divertido do militar que não deixou de notar a cara feia e o esforço que ela fazia para não cuspir o caldo.

- Ora, doutora, surpreende-me este seu comportamento. Afinal é público e notório que vocês Bajorianos não são muito exigentes no tocante à alimentação.  Prova disto é a sua culinária pobre, insipiente, desprovida de qualquer criatividade e requinte.  Veja como exemplo...

A médica esforçava-se em dar atenção ao assunto, quando uma onda de náusea a colheu de súbito. Levantou-se abruptamente levando a mão à boca largando a caneca próxima a Dukat, que, encantado por sua própria voz, ainda tecia comparações entre as cozinhas Cardassiana e Bajoriana, enquanto ela corria para fora do abrigo em direção ao banheiro improvisado, a fim de aliviar seu estômago revirado.

- Doutora, precisa de ajuda? – perguntou, falseando alguma preocupação ao notar de que não era o centro das atenções.

- DEIXE-ME EM PAZ... – Exclamou, seguindo um sonoro engulho.

 


[1] Sopa quente à base de peixe. Bebida muito apreciada no desjejum Cardassiano.

 

Sobreviventes do Preconceito

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