NEESKA ABRIU OS olhos sonolentos e pesados para se dar conta de que, de alguma forma, sobrevivera ao envenenamento da medonha criatura. Por um momento julgou que tudo não passara de um pesadelo, mas o ombro ferido e o enjôo que ainda experimentava trouxeram-na à realidade.  Ainda continuava presa na garganta Ratasha, na companhia desagradável do militar Cardassiano.  Notou que se encontrava sozinha no veículo e tentou sentar-se quando a figura de Dukat entrou no abrigo.

- Não creio ser boa idéia, volte a se deitar até que sua aparência dê ares mais saudáveis.

- O aspecto é tão desagradável assim? – perguntou, atendendo o pedido do oficial sem protestar.

- Digamos que no momento sua aparência assemelha-se a um norat[1] em plena troca de pele.

Anarys franziu o cenho, não gostando nem um pouco da comparação. Tais roedores ao substituírem suas peles tinham um aspecto verdadeiramente horrível, já que a nova ainda não curtida pelo sol era transparente a ponto de se poder observar os órgãos internos.

- Como se sente? – perguntou.

- Enjoada.

- Significa dizer que ainda está expelindo o veneno -- disse enxugando delicadamente a fronte da mulher suada pela febre.

Dukat apanhou uma caneca e verteu nela um líquido viscoso de cor marrom, oferecendo-o à médica.

- Não, obrigada, estou farta de sopas Cardassianas, meu estômago não suportaria – disse afastando a caneca.

- Não é o que está pensando. Vamos beba – insistiu o militar.

A Bajoriana pegou a caneca e observou seu interior e experimentou o aroma.

- O que é isso?

O Cardassiano limitou-se a gesticular para que ingerisse.  Sem protestar tomou um gole, o gosto era agradável, assim como o aroma.

- Humm... bem melhor que fasrushss.

- Seu sacrifício não foi em vão afinal.  A lata de rações que ‘resgatou’ está repleta de Pashlar[2] e outras iguarias que irão agradar o seu ‘refinado’ paladar – disse em tom de mofa.

Após ingerir demoradamente o bem-vindo chá, Anarys observou o ombro com curiosidade médica.

- Fez um bom trabalho, mais um de seus muitos atributos?

Dukat sentou-se próximo a ela e ajeitando melhor a lona que usava como casaco respondeu.

- Não fui um tulgryn a vida toda, já fui mero soldado cuja primeira ordem que recebe é manter-se vivo a todo custo.  Um treinamento básico de primeiros-socorros nunca é descartado.

A atenção da médica estava voltada para a blusa rasgada e em seguida mirou o militar em busca de uma explicação que veio prontamente.

- Não havia tempo para amabilidades – respondeu, sem um pingo de arrependimento.

Neeska verificou a extensão do estrago e mostrou-se ligeiramente incomodada pela exposição involuntária que o mesmo proporcionou de seu corpo.  Dukat notando seu constrangimento não se furtou a comentar.

- Não se sinta acanhada doutora, a visão mesmo que rápida foi extremamente agradável aos olhos.

A mulher evitou o olhar do Cardassiano e tentou manter a conversa em outro rumo, mas não alcançou intento. Dukat facilitou sua tarefa retirando de um dos bolsos de seu uniforme a unha do felino que retirara do ombro dela, dizendo:

- Talvez queira guardar isto como recordação.

Anarys arregalou os olhos diante do ‘souvenir’ e examinou-o de forma curiosa enquanto o militar servia-se de pashlar.

- Isto pode se transformar em um instrumento poderoso.  É mais eficaz que as drogas que a Ordem costuma usar em interrogatórios, não faz idéia do quanto destrava a língua, uma vez na corrente sanguínea.

A médica tornou olhar o tulgryn apreensiva, tentando imaginar o que ele quisera dizer com aquilo.

- Não se preocupe, sou bastante discreto quando se trata de segredos.  Os seu estão bem guardados – ironizou.

 - Se pensa que vou me deixar levar por mais uma de suas implicâncias, desista!

O oficial sorveu com prazer mais um gole de sua bebida quente dando início ao seu jogo favorito de provocar a nativa.

- Apesar de falar fluentemente sua língua, confesso que em seu delírio conturbado ficou-me a dúvida de qual seria o grau de parentesco de alguém que chamou diversas vezes pelo nome Hotzan.  Seria ele um parente? Amigo?... Ou talvez... Um amante?

Ao ouvir aquele nome, Anarys descobriu que seu inconsciente febril abrira as portas de seus mais íntimos sentimentos. Há quanto tempo não pensava em Hotzan, sua primeira grande paixão, alguém que já deveria ter esquecido.  Fechou os olhos por uns instantes, não havia como dissimular aquilo diante dele.  Resolveu então contra-atacar com o que tinha.

- Não é de sua conta!  Mas saiba também que não fui a única a delirar por aqui e, apesar do meu não muito bom kardasi, depreendi que alguém de nome Garak lhe trás profundo sofrimento.

Dukat estacou surpreso ante a revelação, uma onda de ódio invadiu-o e por mais que tentasse dissimular as feições cerradas de seu rosto, acabaram por traí-lo.  Depositou a caneca vazia em um canto.

- É justo então.  Guarde os meus e eu guardo os seus – disse referindo-se claramente aos segredos.

Anarys alegrou-se vitoriosa, fora a primeira vez que conseguira surpreendê-lo, deixá-lo sem ação.  Guardaria para sempre aquele momento na memória.

- Quer ouvir boas notícias para variar? -- perguntou mudando de assunto – Já não chove e neva há horas, o nível do rio começa a baixar e consegui fazer contato com auxílio do dispositivo que pegou ontem nos destroços.  Calculo que até o meio-dia de amanhã estaremos fora daqui.

A médica mal se conteve de alegria.

- Templo Celestial!  Que ótimas notícias!  Já não estava agüentando mais ficar presa neste buraco gelado, faminta e em tão desagradável companh... – a língua fora mais rápida que a censura.

O oficial voltou-lhe o olhar surpreso.

- Vejo que minha companhia lhe desagrada.

- Não tive intenção de ofender.

- Não me senti ofendido, aprecio sua sinceridade e a coragem de externá-la.

O Cardassiano levantou-se em direção à saída.

- Procure descansar, estarei lá fora verificando se ainda temos a presença indesejável de algum horricat.

 


[1] Espécie de roedor nativo.

[2] Chá feito de ervas Cardassianas.

 

Sobreviventes do Preconceito

  |   01   |   02   |   03   |   04   |   05   |   06   |   07   |   08   |   09   |
  |   10   |   11   |   12   |   13   |   14   |   15   |   16   |   17   |   18   |
  |   19   |   20   |   21   |   22   |   23   |   24   |   25  |   26   |