Márcio Seixas: a voz brasileira de Spock

Por Salvador Nogueira

Márcio Seixas é um ícone da dublagem brasileira. Não fosse apenas pelos personagens marcantes que interpretou --que incluem a narração da "Disneylândia", o Batman dos novos desenhos, o computador HAL 9000, de "2001: Uma Odisséia no Espaço", e nosso querido Spock, só para citar os exemplos mais recorrentes--, pela extrema qualidade de seu trabalho e sua atitude profissional impecável. Com fala mansa e extrema simpatia, Seixas concedeu a seguinte entrevista ao TB, falando de sua experiência com Jornada, "2001" e o atual estado de coisas na dublagem brasileira. De quebra, ele conta por que não dublou os primeiros episódios do terceiro ano da série.


 









 

 

    

 

 

 

 

 

 

 

 

Trek Brasilis - Há menos de três meses você voltou a dublar Spock, em uma participação especial para A Nova Geração. Mas já faz algum tempo que você não o dublava, não?

Márcio Seixas - Acho que estava sem dublá-lo há uns três ou quatro anos. Quem fazia o Kirk era o Garcia Júnior, que se afastou de dublagem para se dedicar à assistência para a Disney. Então foi escolhido o Marco Antônio, que é o dublador do George Clooney, para poder fazer o Kirk, e ele fez muito bem. Essa parceria de dublagem de Jornada aconteceu uns três ou quatro anos atrás -- uns quatro anos sem fazer nada do Leonard Nimoy.


TB - E como foi esse reencontro?

Seixas - Olha, fiquei muito surpreso de ver o Leonard Nimoy sem aquela interpretação consagrada que ele fez no Spock de Jornada Clássica. Não sei se era o ator ou o personagem, mas era uma pessoa cheia de inflexões, com reações muito humanas. Achei aquilo maravilhoso, e fiz exatamente o que ele faz, não acrescentei nada. Tenho um respeito tão grande pelo personagem e pelo culto que os trekkers têm pelo personagem que jamais faria... Dificilmente você vai ver vícios de tradução da minha boca, "muito bem", "não exatamente", "me dê um anel quando chegar na cidade", "e tem mais de onde saíram esses", esse tipo de coisa. Esse vício de linguagem eu não cometo, reescrevo o texto. No caso do Spock, até o tradutor era trekker, então eu não mudava uma vírgula do texto.


TB - Isso foi uma coisa que quem comentou também foi o Ricardo Juarez, que faz dublagem de Jornada nas Estrelas - Voyager. Ele disse que a equipe que dirige a dublagem tem uma preocupação muito grande em manter os dubladores presos ao texto.

Seixas - Exatamente.


TB - Com relação às cenas que você fez, alguma te marcou, impressionou de alguma forma especial?

Seixas - Não, nada me marcou na dublagem que fiz, o que me marcou foi a interpretação dele completamente diferente. Fiquei muito atento a tudo que ele fazia. Não teve uma cena ou um diálogo específicos que me chamasse mais atenção. O trabalho inteiro me chamou atenção, fiquei maravilhado de ver ele sendo irônico com referência à teimosia do Picard, perdendo a paciência com Picard. "A sua teimosia, Picard, me lembra uma pessoa que eu conheço bem", era o pai dele, e tem um diálogo até comovente entre ele e o Picard sobre o pai dele. Olha, foi um trabalho muito bonito, gostei muito de ter feito e não vou perder de maneira nenhuma, porque quero ver no contexto como é a aparição de Spock, não sei se é um combate porque não conheço a história toda, nesse jogo de inteligência e de poder com o Picard.


TB - Como funciona, já que você aproveitou para dizer que ainda não teve oportunidade de ver o episódio, esse esquema para dublagem? Você recebe o texto, vê uma vez a cena que vai fazer e na sequência grava?

Seixas - São três minutos para ver uma cena, ensaiar, corrigir os erros e gravar. No caso de Jornada, não existe erro, porque a tradução é feita com muito cuidado. Se tem um trabalho que eu tiro o chapéu, pela beleza, pelo profissionalismo com que ele é feito, é a tradução do texto. Todo o trabalho de Jornada é feito com muito cuidado, um trabalho muito recomendado.


TB - Até porque existe um carinho muito especial da equipe de tradução pelo seriado...

Seixas - Ah, claro.


TB - Vamos falar um pouco de "2001", ano que todo mundo chegou agora, mas que você chegou lá nos anos 70. Como que foi a dublagem de 2001, que até hoje é a mesma -- o filme nunca foi redublado.

Seixas - É uma surpresa, porque normalmente você pode ver um filme dublado ou um Raul Julia com a minha voz, mas você pode ver o mesmo filme numa TV a cabo dublado por outro dublador. Isso é muito comum, o cliente resolve dublar uma versão para TV a cabo e não tem interesse em manter a voz, ou não teve tempo de me procurar, ou a produtora não teve interesse de me procurar e chama outro dublador para trabalhar. No caso de "2001", estou achando muito curioso que até agora ainda mantenham a minha voz, como nos filmes bíblicos que fiz do Charlton Herston. Até agora não vi a substituição da voz. Mas dublar o HAL para mim foi uma agradável surpresa de um diretor que tinha talvez dez anos menos experiência de dublagem do que eu.

Quando comecei a dublar o HAL, nas primeiras cenas, ele parou e disse assim, "para você o trabalho está bom?". Basta essa pergunta para você olhar para ele com os olhos assim bem atentos -- uma pergunta dessa não acontece no estúdio, você chega lá, o diretor "briefa" [de "briefing", significa "instruir"] e você começa a trabalhar. E assim foi, quando cheguei para trabalhar, não precisava nem explicar, eu era apaixonado pelo filme. Ele disse, "olha você vai dublar o HAL", falei, "meu Deus, isso é um prêmio, não é um trabalho".

Chego no estúdio, dublo, aí lá, depois de, acho que duas ou três gravações, ele foi e disse assim, "para você está bom?" Eu falei "Torelli, essa pergunta, rapaz, ela é surpreendente, que que é?" "Márcio, só responda, você ouviu a gravação?", "ouvi", "vamos ouvir de novo", ouvimos, "para você está bom?" Falei "olha, vamos fazer o seguinte, eu desisto, que que é, o que que está havendo? O que que eu fiz?". "Márcio você está dublando um computador, computador não respira, olha lá sua respiração". Eu falei "que coisa, como é que eu não me dei conta disso?"

Então pra mim foi um dos trabalhos mais difíceis que fiz, porque eu enchia o pulmão para ler o texto e tinha que manter sempre aquela mesma projeção e ter o cuidado de não inflexionar muito. Tem dois momentos dessa dublagem que são para mim, meu Deus, como é bom ver aquilo! É quando HAL joga xadrez com um dos astronautas e quando acontece a morte dele tendo o cérebro desligado ali nas células.


TB - Qual foi a troca de sensações entre ter visto o filme e de repente estar fazendo aquela cena? Imagino que o toque emocional deve adicionar muito.

Seixas - Saí fascinado pelo trabalho do computador no cinema, apaixonado pelo HAL, e aí recebo, assim de estalo, um telefonema, falando "olha, vamos dublar '2001' e você vai fazer o HAL". Fiquei muito feliz. É como te disse, não foi um trabalho que fiz, foi um prêmio que ganhei, que me deram para dublar. Considero aquilo uma homenagem à minha profissão, à minha atividade, ao profissional que sou. Nada melhor do que dublar uma coisa que você gosta, conhece, entende, quer dizer, entende do ponto de vista da história. Pra mim foi um momento marcante, inesquecível da minha vida profissional.


TB - Muitos atores relatam que quando passam muito tempo com o personagem, acabam ganhando um alter-ego desse personagem. Gostaria de saber de você que acompanha o trabalho de um ator, ou de um personagem, se o dublador também acaba adquirindo maneirismos, um pouco da personalidade, um alter-ego mesmo dos personagens que ele dubla e especificamente se você ganhou alguma coisa do Spock.

Seixas - Não, não, é muito bom me projetar em alguns valores desses personagens que dublo. Por exemplo, adoro o Leonard Nimoy, já gostava quando ele era um coadjuvante em "Missão Impossível". Não sei se você se lembra de um seriado chamado "Missão Impossível", com um ator chamado Peter Graves, que passava na TV Tupi nos anos 60. O Leonard Nimoy pertenceu à série, depois foram trocando. Eu já gostava daquela cara dele esquisita, esse cara tem uma cara esquisita, não é um ator americano comum, não tem cara nem de americano, que cara engraçada que ele tem. Sempre tive por ele uma simpatia muito grande. Dublar o Spock também foi outro prêmio. Li o livro dele, conheci muito do ator Leonard Nimoy, tenho um filme que eu era apaixonado, sem saber que ele tinha sido diretor, que é "Três Solteirões e um Bebê". Só fui descobrir que ele era diretor do filme lendo esse livro. Não me identifico com o ator, gosto de alguns valores que eles passam, gosto de coisas que eles pensam, mas o alter-ego não muda, porque dublo tanta gente, se eu for adquirir um pouquinho de cada um desses atores, eu viro uma colcha de retalhos.


TB - Espero que você não saia de capa preta de noite, aproveitando a escuridão (risos). Do segundo ano para o terceiro da Clássica, nessa nova dublagem, houve alguns episódios em que você acabou não dublando o Spock. O que aconteceu nesse intervalo, por que entrou um outro dublador, e como é que foi sua volta ao Spock nos episódios subsequentes?

Crédito: USA (www.usa.tv.br)

Seixas - Acho que não tem quatro anos não, tem menos de quatro anos, estou me lembrando aqui de alguns fatos, algumas referências, acho que tem três anos. Tenho alguns valores de que não abro mão. Sou mineiro, filho de mineiro, nascido e criado em Belo Horizonte, vim para cá já pai de filho pro Rio de Janeiro. Um dos valores que tenho, aprendi com meu pai, que foi uma pessoa muito simples, que dizia assim, "você conhece o valor de um homem pela carteira de trabalho dele". Meu pai, que era um pequeno empresário, mas pequeno mesmo, adorava receber, por exemplo, um pedido de emprego de uma pessoa que, quando mostrava a carteira de trabalho para ele, tinha só uma assinatura. Ele achava aquilo um indício de que houve entre ele e o empregador uma relação de amizade, de respeito, de compreensão. Cresci ouvindo isso.

Quando comecei a fazer o Spock, já achei chato ter que dar minha carteira de trabalho, porque por mim ela só teria a assinatura das rádios que eu trabalhei em BH, a rádio Jornal do Brasil, a Herbert Richers e só. Pra mim já estava cheia demais a carteira. Quando fui fazer Jornada, muito entusiasmado, não quis questionar muito o fato do [Victor] Berbara [dono da dubladora VTI-Rio] exigir que os dubladores fossem registrados em carteira. Tá bom, fui registrar, enfim, pra efeito de fiscalização, e dublamos tudo [que havia sido pedido, os primeiros 52 episódios]. Acabou o seriado, não tive mais interesse em continuar trabalhando, deram baixa na minha carteira, foram sempre muito corretos -- a VTI é sempre muito correta.

Passou o tempo, então veio a alegria. A tradutora da série, Cristina Nastasi, me liga e diz assim, "olha estou te ligando, o Dr. Victor Berbara está sabendo, pra te comunicar que está voltando, com o terceiro ano da série, com tantos episódios e queremos saber se você quer fazer o Spock".

Eu falei, "querer? Pelo amor de Deus, não há chance de eu não fazer". "Mas tem um problema Márcio, Dr. Victor mandou avisar que é carteira assinada". "Não, não quero não. Só vou como eventual, vou, gravo o Spock e vou embora". "Márcio, vamos fazer o seguinte, vou sair do circuito, você se entende direto com o Victor Berbara". Victor Berbara me liga. "Márcio, no way". Nunca vou me esquecer desse "no way" dele. "No way, carteira assinada, você vai dublar o Spock e todos os trabalhos da casa, durante o período que você estiver dublando o restante do seriado". Eu falei, "não vou fazer". Ele falou "então você não vai fazer a série". "Não tem problema, não faço a série".

E aí ficou um diálogo áspero, ele é uma pessoa muito difícil, e desligamos o telefone. A gente quase chegou a gritar no telefone um com o outro. Falei, "caramba, na minha vida profissional quem manda sou eu, e não Victor Berbara". E esqueci o assunto. Uma tarde estava em casa, vendo TV, caí em Jornada nas Estrelas, numa cena em que o Spock está dentro de uma cadeia com o Kirk, e eu ouço um colega dublar assim "capitão, acho que não temos chance de sair daqui capitão!" Peguei o telefone e liguei para a Cristina Nastasi, e na segunda-feira para a VTI. Na primeira ligação, quem atendeu disse, "Dr. Berbara não chegou ainda". Saí para fazer um trabalho, quando voltei, fui chegando em casa, o telefone tocou, dei um pulo no telefone, e a secretária disse assim "Márcio, Dr. Victor vai falar com você". "Ah, pois não, pois não". "Oi Márcio, como vai tudo bem?" "Oi Dr. Victor, tudo bem". Eu tinha me esquecido completamente do nosso diálogo áspero. Você me permita me alongar, porque eu preciso que você saiba os detalhes disso, tá?


TB - Claro, vai lá.

Seixas - Se tiver tempo...


TB - Sem problemas, pode falar.

Seixas - Preciso te explicar, porque já falei para a Cristina que a minha vontade era numa convenção de trekkers pegar o microfone, aparecer e explicar o que estou explicando para você agora. Aí o Berbara me disse assim, "o que que eu posso fazer pelo amigo?"

Falei "Dr. Victor, no sábado eu estava vendo Jornada nas Estrelas, e vi o Spock, eu...", foi só o que consegui dizer, porque, a partir daí, ouvi quase 50 minutos de ESPORRO. Eu não dizia uma palavra. Ele estava apoplético no telefone. O culpado era eu, ele me deu todas as chances -- estou repetindo o que ele falou para mim --, e que agora não adiantava eu vir chorar no ouvido dele. Depois de 50 minutos de ouvir esporro, o telefone do lado tocou, e ele disse assim, "olha, vamos desligar o telefone, que preciso trabalhar e não tenho tempo a perder, só pra terminar nossa conversa, pra você ter certeza do que estou falando, se o Lauro Fabiano morrer" -- Lauro Fabiano é o que dublou esses cinco episódios --, "nem assim você vai ser convidado para dublar o Spock. Tenha um bom dia, abraço".

Desliguei o telefone, estava muito deprimido, liguei para a Cristina, ela falou, "Márcio, você conhece Dr. Victor, dificilmente ele vai reconsiderar essa posição". Exatos oito dias depois desse esporro, o telefone toca na minha casa e fala "Como vai o amigo, tudo bem?"

"Oi Dr. Victor, tudo bem?", "Vamos lá dublar o Spock?" (risos). Não acreditei, falei, "será que é trote? Não é possível". "Está bem, Dr. Victor, com muito prazer". "Traga a carteira de trabalho, ok?" "Tá, claro!". Depois fui feito uma criança pra lá, entreguei, e aí "como vai o amigo?". Ele não se lembrava daquele esporro. Você acredita nisso?


TB - Nossa, não lembrava mesmo?

Seixas - Não. Como ele é muito esporrento, não se lembrava de mais um. Aí fiz uma tentativa. Trabalho no USA, fui lá, falei com o pessoal responsável pela programação dos filmes, que eles como clientes tinham o direito de devolver a série pra poder trocar a voz, e que eu estava me oferecendo como dublador do Spock, para refazer o trabalho para o USA, sem custo. Queria trabalhar sem receber e gravar só a minha parte. Aí o Cabral não teve muito interesse, o Berbara também não e ficou nisso. E aí ficaram esses quatro ou cinco episódios dublados pelo Lauro Fabiano.


TB - Certo, agora você só trabalha para a VTI como eventual?

Seixas - Só como eventual.


TB - E não tem tido mais problema desse tipo?

Seixas - Não, não, não. Foi a única coisa que consegui dizer para o Dr. Victor nessa minha volta, porque aí ele aceitou que eu fizesse o Spock, e não mandou levar carteira não. Pediu, "traga um comprovante" de não sei o quê, é como já tendo recebido e descontado em uma previdência em outra empresa, e me deixou trabalhar como eventual. Aí eu tive vontade de falar, mas como eu preferia primeiro acabar de dublar o Spock, "a gente brigou tanto, pro senhor agora permitir que eu trabalhe sem carteira assinada".


TB - Parece que ele é uma pessoa meio difícil de lidar...

Seixas - Meio não, ele é muito difícil, muito difícil. Agora, é muito inteligente, viu? Ele tem um cérebro privilegiado, ele saca das coisas, sabe das coisas.


TB - De toda sua carreira, de todos os seus personagens, filmes, séries que você dublou, qual é o preferido?

Seixas - Ah, não tem o preferido, porque tem uns filmes que eu fiz do Charlton Herston, tem a minha amada Disneylândia, tem os trabalhos do Leonard Nimoy. Eu tenho um prazer grande, por exemplo, de dublar o Clint Eastwood. Tenho uma justificativa para cada um desses trabalhos, então não tenho um preferido não, e sim, um grupo de trabalhos que tenho assim, um carinho especial. E um deles é o Spock. 


TB - Você costuma assistir depois aos trabalhos que faz?

Seixas - Sempre que posso, sempre. Minha mulher detesta, porque fico assim "meu Deus, porque que não troquei essa palavra, ficaria tão melhor naquele momento do avião", ela fica p... da vida, ela detesta assistir filme do meu lado, porque deve de ser muito chato, não é?


TB - Parece um comentário também típico de dublador, que normalmente é muito perfeccionista, ele sempre acha que dava pra ficar melhor...

Seixas - Exatamente. Aí eu falo assim "olha que besteira, olha aquela boca, meu Deus, eu podia ter pulado". Enquanto isso o diálogo está rolando, e eu "por que que eu não usei tal palavra?", meu Deus, ela fica p... da vida.


TB - Como é que você vê atualmente a dublagem brasileira?

Crédito: USA (www.usa.tv.br)

Seixas - Tomara que eu não seja crucificado pela classe, mas a dublagem atualmente está indefensável. Tenho visto trabalhos deprimentes de tão ruins! A que ponto chegou a falta de exigência de determinados canais, a falta de consciência de quem escala pessoas sem condição de trabalhar. Aí vou entrar numa esfera que talvez a gente fique a noite inteira aqui discutindo. Não entenda isto como uma prepotência da minha parte não, viu? Um olhar um pouco mais atento no final de semana sobre o que você tem dos vídeos, ponha junto TV aberta e TV a cabo, e você vai ver coisas agora que, Nossa Senhora! Vi um [programa do canal] Discovery dublado na Herbert Richers, isso aí você pode publicar, não tenho o menor medo que as pessoas saibam, uma garota sendo resgatada de um carro esmagado por um caminhão de lixo. A maneira como a garota foi dublada, me pergunto como é que o Discovery pagou por esse trabalho. Como cliente ela poderia dizer, "que é isso? Vocês estão brincando de fazer dublagem? Por favor coloquem uma profissional para fazer essa cena".

É uma cena abaixo da crítica, é uma adolescente presa nas ferragens de um carro, aparece depois de recuperada, dando depoimento, agradecendo aos bombeiros, agradecendo aos paramédicos, aos primeiros-socorros, e a maneira como ela fala é de uma pessoa que nunca viu dublagem. Como que a Discovery aceita um trabalho desses? 


TB - Você acha que a falta de exigência está nos canais, nas empresas de dublagem ou nos dubladores?

Seixas - Nas empresas de dublagem e em alguns canais de TV. Especialmente as TVs a cabo, as TVs que passam documentário. Nisso estou incluindo People And Arts, Discovery, os canais 52, 47, enfim de um modo geral TVs a cabo.


TB - Isso tem a ver com a natureza jornalística do programa, ou seja, o fato de eles não quererem gastar muito tempo para fazer uma dublagem mais apurada, ou é desleixo mesmo?

Seixas - Também. Tem uma intenção de fazer um trabalho barato e daí eles não questionam a qualidade, o importante para eles é fazer um trabalho que custe pouco. Lamentavelmente, o que vai para o ar dublado é um negócio vergonhoso, uma grande parte do trabalho de dublagem que tenho visto hoje, principalmente em documentários para a TV a cabo, são de matar a gente de vergonha, de tão ruins que eles são.


TB - Você acha que isso prejudica a imagem da dublagem como um todo, que de repente pode ganhar potenciais críticos inimigos que não precisaria ter?

Seixas - Exatamente. Aumenta muito a acidez dos detratores da dublagem. Você sabe que tem uma parte da imprensa que condena a dublagem e isso para eles é um prato. Sou obrigado agora a dizer para um jornalista que a dublagem hoje está indefensável. Se fosse uma coisa localizada, um determinado canal, talvez a gente até conseguisse chegar nesse canal e dizer, "por favor, vocês estão com um trabalho muito ruim, por favor coloquem uma pessoa responsável, que conheça dublagem". Você nunca vai ver isso numa TV Globo, na TV do Sílvio Santos você nunca vai ter um trabalho desse, você não vai ver um trabalho desse na TV Record, entendeu?


TB - Uma coisa que tem acontecido de forma recorrente até em Jornada nas Estrelas é a troca de vozes, ou seja, personagens que mudam duas, três vezes de vozes, em apenas duas temporadas. Com relação a isso, você acha que prejudica um personagem ter várias vozes? 

Seixas - Prejudica muito. O que ouço de reclamação a respeito do Homer, dos Simpsons. Essa dublagem foi consagrada, a primeira equipe foi totalmente aprovada pelo público, que adora aquele desenho animado. Meus filhos são telespectadores que não questionam muito qualidade de dublagem e eram alucinados pelos Simpsons. Quando houve a mudança do elenco todo eles simplesmente deixaram de assistir. Veja bem, não estou criticando A ou B que substituiu o elenco original. Mas enfim, estava lá aquele elenco pronto, eles gostaram, aprovaram aquela voz, aquele personagem entrou na sensibilidade deles na primeira, e de repente mudam as vozes, eles perderam completamente o interesse pela série, como eu acho que houve um desinteresse geral, sempre há. Sempre vai se pagar um preço pela substituição de uma voz consagrada pelo público, o exemplo que você tem mais doloroso dessa atitude foi com o Kojak.


TB - Você gostaria de participar de uma convenção de Jornada?

Seixas - Sim, claro, adoraria. Eu quis até participar de uma uma vez, quando trouxeram o Sulu, mas acabou não sendo possível. Mas eu adoraria poder comparecer.


TB - Alguma mensagem para os trekkers?

Seixas - Eu admiro e respeito muito essa forma com que os trekkers cultuam a série e gostaria de dizer que me sinto em dívida com eles pelos episódios que acabaram não ficando com a minha voz e que eu estou disposto a trabalhar de graça, se houver interesse, para mudar isso.

Entrevista feita em maio de 2001.
Transcrição por Rosimeire Anne.
Publicada originalmente em 14 de setembro de 2001, como parte das comemorações dos 35 anos de Jornada nas Estrelas