Astronomy Brasil
setembro de 2006

A história do vôo

Conquista que se inicia com relatos mitológicos, a história do vôo reuniu um conjunto de homens e experimentos, onde Santos Dumont deu contribuições fundamentais

Na primeira das viagens que fez à América, quando pensou ter chegado às Índias, Cristóvão Colombo manteve dois diários de bordo. Num deles, o oficial manipulou as distâncias que navegava a cada dia para tranqüilizar seus tripulantes, temerosos de cair da "bacia do mundo", segundo conceitos que proliferaram durante a Idade Média. Como se equivocou com o valor do grau, ironicamente, o falso diário acabou se mostrando mais verdadeiro que o oficial.

Não é impossível que paradoxos dessa natureza possam manifestar-se em relação à conquista do vôo, aventura de que participaram homens de todas as épocas, tanto sob a forma de mitos, sonhos, concepção teórica como desenvolvimentos práticos. Se for assim, Conexão Wright-Santos-Dumont, do jornalista especializado em divulgação científica Salvador Nogueira, traz uma contribuição especial à bibliografia nesta área. Não que tenha sido forjado, mas porque trata essas conquistas com técnicas de novela, recriando diálogos e situações como forma de obter um relato inteligível, especialmente em relação ao mais pesado que o ar.

Seguindo as pegadas dos acontecimentos reais Nogueira constrói pontes narrativas tanto para suprir carências como transmitir um conceito central: a conquista do vôo não foi, nem poderia ser, obra de um único homem, mas desenvolvimento que, em determinado momento da história, permitiu a primeira libertação do confinamento gravitacional na superfície da Terra.

Lorde Kelvin, Rayleigh, Langley e claro, Alberto Santos Dumont e todos os seus amigos franceses, além dos irmãos Wright, personagens da história real, estão todos em cena, mas com diálogos adaptados ou inteiramente recriados por Nogueira.

Recorrer à literatura como solução para escapar de certas limitações tanto científicas quanto históricas não é um recurso novo. Na verdade, está na base da ficção científica e pode ter começado com Luciano de Samosata (125-181), nascido na província romana da Síria e que atingiu o cume de sua produção literária sob o reinado de Marco Aurélio. Em História Verdadeira, Luciano descreve uma fantástica viagem à Lua, faz referência à vida extraterrestre e antecipa temas popularizados apenas no século 20 pela ficção científica.

Carl Sagan (1935-1996), astrônomo e divulgador de ciência norte-americano, e Fred Hoyle (1915-2001), matemático, cosmólogo e também divulgador de ciência inglês, são dois casos recentes. Sagan ficou conhecido por Contato e Hoyle consagrou-se especialmente com Nuvem Negra.

Neste ano em que se comemora o centenário do vôo de um avião, o Brasil retoma a conquista formalmente documentada de Santos Dumont com seu "14-Bis", batizado com este nome porque fez sua primeira ascensão sustentado pelo balão de número 14. É bastante conhecida a disputa não intencional de Santos Dumont com os irmãos Wright e a posição do inventor brasileiro que pôs à disposição de todos os interessados os projetos de seus inventos. Tanto do "14-Bis" como o da ainda hoje fascinante "Demoiselle", versão esportiva de um avião barato e versátil que ajudou a criar as bases da aviação moderna, com a produção em série.

Os irmãos Wright, ao menos na época, não ofereceram documentação sobre vôos pioneiros. Para os partidários de Santos Dumont, Salvador Nogueira recupera um fato ocorrido originalmente em 17 de dezembro de 1903. Encenado 100 anos depois, na presença, entre outros, do presidente norte-americano, George W. Bush, um piloto vestido como Orville Wright, inclusive com um falso bigode, prepara-se para uma decolagem na mesma praia, nas proximidades de Kill Devil Hills, onde o Flyer voou pela primeira vez. Tensão no ar.

A TV retransmite para o mundo inteiro e chega o momento. O avião parece decolar em câmara lenta e dá a sensação de que permanecerá no ar. Mas em seguida, embica e espatifa-se na lama. Os irmãos Wright devem ter praguejado em algum lugar, mas Santos Dumont estava vingado. Até porque, suas réplicas do "14-Bis" continuam voando em comemorações parecidas. Ulisses Capozzoli