Trecho

Esse pequeno extrato é a abertura do sétimo capítulo do livro ("Tomando conta do quarteirão"), dos doze que ele tem. A seleção originalmente foi publicada no site literário Trópico.

A exuberante presença da Lua no céu representou mais do que inspiração farta e barata para os apaixonados ao longo da história. Com igual ou maior intensidade, ela despertou os sonhos de aventureiros, artistas e cientistas. O único objeto no firmamento (excetuando-se o Sol) a se apresentar como um disco a olho nu, nosso satélite desde sempre ofereceu o aspecto de um outro mundo, além deste e ainda assim perto o bastante para ser alcançado.

No século II, um escritor residente em Atenas, então sob o domínio do Império Romano, ousou narrar uma jornada até a Lua. No livro “Verae historiae” (Histórias verdadeiras), Luciano de Samósata nos conta de uma fortíssima tempestade oceânica que acaba por arremessar um navio, com seus 50 homens, numa jornada de sete dias até a superfície lunar -descrita então como uma grande ilha iluminada e circular. Lá, os bravos aventureiros acabam envolvidos num conflito entre os habitantes da Lua e os do Sol. Após o estabelecimento de uma trégua, os navegantes retornam à Terra.

A intenção de Luciano era produzir uma paródia fantasiosa, uma crítica aos costumes e ao seu ambiente local. Mas nada que levasse a crer que uma viagem até a Lua fosse possível, ou mesmo que alguma das descrições a ela atribuída fosse verdadeira. Apesar disso, a história deu a outro pensador, 15 séculos depois, subsídios para produzir uma obra com enfoque diferente.

Inebriado com as novidades copernicanas, o jovem Johannes Kepler decidiu usar uma dissertação durante a graduação na Universidade Tübingen para responder a uma pergunta incômoda à velha tradição geocêntrica: De que forma os fenômenos celestes, tais como descritos por Copérnico, seriam apreendidos por um observador posicionado na superfície da Lua? O ano era 1593, e Kepler então tinha apenas entusiasmo, espírito indômito, talento matemático fora do comum e 22 anos. Numa época em que as idéias heliocêntricas eram perseguidas em toda parte, a apresentação do trabalho não foi autorizada. Desapontado, ele guardou seu manuscrito e decidiu esperar por um momento mais oportuno.

O primeiro passo para buscar a futura publicação do material foi tentar camuflá-lo sob uma roupagem “clássica”. Uma história de ficção, com tom fantasioso e mitológico, talvez tornasse suas idéias mais palatáveis aos aristotélicos e, ao mesmo tempo, escondesse a real seriedade dos assuntos tratados. Foi com muita satisfação que Kepler encontrou, nos escritos de Luciano e num relato de Plutarco, as “justificativas” para produzir uma lendária jornada lunar e reviver seu trabalho universitário. A obra ganhou estímulo ainda maior quando, em 1610, Galileu Galilei publicou os primeiros resultados obtidos com o uso do telescópio em observações astronômicas. Em “Sidereus nuncius” (Mensageiro estelar), o italiano apresenta de uma tacada só a descoberta de quatro luas que giravam em torno de Júpiter, incontáveis estrelas invisíveis a olho nu e, o mais importante para Kepler, a constatação de que a Lua não é uma esfera perfeita, mas sim salpicada de montanhas e crateras.

Tão forte foi a pancada no modelo geocêntrico e aristotélico que o alemão se sentiu confiante a ponto de iniciar os preparativos para a publicação de seu manuscrito, agora já no formato de ficção. O “Somnium” (Sonho) foi distribuído em quantidade limitada a alguns colegas, para apreciação -Kepler queria saber como o material seria recebido. O pequeno livro narrava a aventura de Duracotus, um rapaz que é expulso de casa por Fiolxhilde, sua mãe, e vaga pelo mundo até conseguir um trabalho sob a tutela do astrônomo dinamarquês Tycho Brahe. Após cinco anos de observações com Tycho, Duracotus decide voltar para casa. Encontra sua mãe feliz por revê-lo e conta a ela tudo o que aprendeu sobre a Lua e os corpos celestes. Fiolxhilde então revela que já sabia de tudo isso e muito mais, instruída por um ente benigno, o “demônio da Lavania” -ninguém menos que o espírito da Lua. Ela diz que a criatura tem o poder de transportá-los até a superfície lunar, oferta que se torna irrecusável para Duracotus. Levados em uma jornada de quatro horas, Duracotus e Fiolxhilde são recebidos pelo “demônio” na Lua e então instruídos sobre a astronomia e a biologia lunares, conforme o intuito de Kepler em seu manuscrito original.

Apesar de lembrar em muitos aspectos, intencionalmente, as fantasias de Luciano, o “Somnium” se destaca pela concepção primordialmente científica, não-metafórica. A idéia era realmente falar sobre uma potencial viagem à Lua e especular sobre o ambiente daquele mundo, com base no conhecimento disponível. Em detrimento disso, alguns inimigos preferiram enxergar uma outra “realidade” no manuscrito de Kepler. Em 1611, após cair em mãos erradas, a obra foi interpretada como um relato autobiográfico e usada como evidência de que sua mãe, Katherine, praticava bruxaria.

“Kepler estava bem ciente da seriedade das acusações e colocou tudo o mais de lado para trabalhar pela exoneração de Katherine. Uma longa, tediosa e custosa batalha legal se seguiu: apenas depois de cinco anos, parte dos quais sua mãe teria passado na prisão, a velha senhora foi libertada; mas o dano já havia sido feito. Katherine Kepler morreu em abril de 1622 por causas diretamente ligadas aos rigores de seu aprisionamento; seu filho foi capaz de fazer poucos trabalhos significativos enquanto tentava obter a libertação da mãe; e a publicação do ‘Somnium’, ao menos para o momento, estava fora de questão”, escreveu o historiador Gale Christianson.

O astrônomo passou a década seguinte escrevendo notas sobre seu manuscrito, incluindo a ciência que havia ficado de fora da narrativa ficcional. Em 1630, o trabalho estava praticamente pronto para ser publicado. Depois da morte de Katherine, nada mais poderia desmotivar o cientista a divulgar o material -exceto sua própria morte, que se deu subitamente em novembro daquele ano. O ‘Somnium’ só veio a público de forma definitiva em 1634, graças ao esforço de um dos filhos de Kepler, Ludwig. Apesar disso, seu lugar ficou marcado na história como uma das narrativas pioneiras no gênero da ficção científica e a primeira especulação séria sobre uma viagem lunar.

Outros seguiram seus passos. Em meados do século XVII, o francês Cyrano de Bergerac (1619-1655) escreveu sua “Voyage dans la Lune & Histoire comique des états et empires du Soleil”. Na obra, ele segue a tradição satírica de Luciano e apresenta viagens lunares como metáforas.

As narrativas posteriores começam a se tornar mais e mais técnicas, a ponto de, em 1827, o escritor norte-americano George Tucker (sob o pseudônimo Joseph Atterley) descrever a necessidade de “atravessar um vazio sem ar” durante a jornada até a Lua, em seu “A Voyage to the Moon”. Não foi muito depois disso que o francês Júlio Verne produziu o maior ícone da ficção científica ligado a viagens lunares: “De la Terre à la Lune”.

Tido até hoje como o “pai” da ficção científica moderna, Verne descreveu várias revoluções tecnológicas do século XX com décadas de antecipação. Submarinos, balões e viagens ao centro da Terra figuram entre os temas, sempre com um enfoque de aventura “científica”. Mas, de todas essas histórias, é difícil encontrar maior lampejo premonitório do que em “Da Terra à Lua” e sua continuação, “Ao redor da Lua”.

Publicadas respectivamente em 1865 e 1870, descrevem com exatidão diversos traços que depois seriam espelhados na verdadeira epopéia lunar. Em primeiro lugar, Verne aposta nos Estados Unidos como o país capaz de empreender o esforço -uma previsão que, historicamente, se mostrou correta. O escritor francês também percebeu que um projeto dessa magnitude só poderia ser atingido a partir da canalização das pesquisas bélicas para outros propósitos.

A história se passa após a Guerra Civil dos Estados Unidos. Em Baltimore, os membros do chamado Clube do Canhão (entidade que agregava todos os fabricantes e inventores de armamentos no país) andavam cada vez mais entediados com o cessar-fogo e o fim dos conflitos. Na falta de perspectiva de novos combates, seu presidente, Impey Barbicane, decide iniciar um empreendimento que traria de volta o velho ânimo aos afiliados da instituição: seu plano era enviar um projétil até a Lua, usando o maior canhão já construído.

Os intrépidos cientistas bélicos começam então a estabelecer os parâmetros para a construção desse artefato capaz de disparar um projétil, grande o suficiente para ser avistado por telescópios, até a superfície lunar. Consultando os astrônomos do Observatório de Cambridge, constatam que seu canhão precisaria ter quase 300 metros de comprimento. O projétil, para ser grande e ainda assim leve, deveria ser oco e composto majoritariamente por alumínio. Os cientistas consultados apontam que a ocasião ideal para o lançamento ocorrerá em 1º de dezembro do próximo ano, e a equipe do Clube do Canhão começa a trabalhar freneticamente para construir os sistemas necessários.

Em meio aos trabalhos, surge um aventureiro francês, de nome Michel Ardan, que propõe a Barbicane a troca do projétil original por um outro, de sua criação. O objetivo é mandá-lo pessoalmente na viagem, em seu interior. A proposta é recebida com entusiasmo, e Ardan se torna um herói nacional. O único a se opor é o capitão Nicholl, um velho desafeto de Barbicane. Pouco antes do lançamento, os dois cientistas bélicos quase entram num duelo mortal, mas Ardan consegue apaziguá-los e convencê-los a viajar com ele no projétil.

Na data planejada, o trio parte a bordo da cápsula, que é disparada pelo gigantesco canhão, instalado na Flórida, por sua posição geográfica favorável. O projétil acaba sendo desviado da trajetória original e não atinge a superfície lunar. Em vez disso, é colocado num vôo circunlunar, retornando à Terra alguns dias depois, fazendo um “pouso” nas águas do oceano Pacífico. Os três heróis são resgatados e a história do primeiro vôo até a Lua se torna um best-seller.

A quantidade de similaridades entre “De la Terre à la Lune” e o Projeto Apollo, da Nasa, conduzido cem anos depois, é impressionante. Podemos nos ater aos detalhes técnicos: o vôo acontece numa cápsula, a dependência dos campos gravitacionais da Terra e da Lua para o sucesso da missão é total, são três os astronautas a bordo, a decolagem acontece na Flórida, o retorno se dá no oceano Pacífico, um dos principais materiais escolhidos para a nave é o alumínio, o projétil conta com um sistema de suporte de vida para a captação do gás carbônico e a liberação de oxigênio para respiração, a viagem até a Lua leva cerca de quatro dias, e assim por diante.

Mais do que isso, Verne conseguiu capturar na ficção o espírito e os efeitos de uma jornada lunar. A natureza científica do empreendimento, o esforço gigantesco, o orçamento estratosférico, a mobilização de um país inteiro, o entusiasmo e a admiração internacionais, e a possibilidade de ver, com os próprios olhos, a Lua como um novo ambiente a ser explorado e ocupado.

Desde tempos imemoriais, a viagem à Lua nos foi apresentada como uma tarefa sobre-humana, algo que não poderia ser atingido senão pelo auxílio de deuses, criaturas sobrenaturais ou fenômenos naturais. Com “De la Terre à la Lune”, a jornada passou a ser um desafio tecnológico -e não surpreende que vários dos pioneiros da Astronáutica (Tsiolkovsky, Goddard, Oberth, Von Braun, Korolev) tenham bebido nessa fonte. A rota lunar se tornou um símbolo da conquista do espaço, um rito de passagem definitivo para a humanidade — o ato simbólico de nossa conversão de civilização terrestre a cultura cósmica.