O Estado do Paraná
13 de agosto de 2006

Lenha na fogueira

Jornalista elimina possibilidade de pioneirismo de Santos-Dumont e comprova a "paternidade" do avião para os irmãos Wright

Quem inventou o avião? Foram os irmãos norte-americanos Orville e Wilbur Wright ou o brasileiríssimo Alberto Santos-Dumont? Esta polêmica, que parece não ter fim, tem uma importância muito grande... aqui no Brasil. Fora do país, ninguém tem a menor dúvida: os irmãos da cidade de Dayton, Ohio, fizeram o primeiro vôo com um aparelho mais pesado que o ar, o Flyer, no dia 17 de dezembro de 1903. O vôo inaugural do 14bis, realizado em 12 de novembro de 1906, foi praticamente esquecido no mundo todo.

Para tentar dirimir esta polêmica por aqui, o jornalista Salvador Nogueira escreveu Conexão Wright-Santos-Dumont (Record, 386 páginas). O livro é uma história dos pioneiros da aviação contada de maneira romanceada (ao contrário da primeira obra do autor, a também ótima Rumo ao infinito, publicada pela Globo, que discorre sobre a corrida espacial de maneira mais tradicional). Para dar uma idéia melhor da evolução dos anos iniciais da aviação, Salvador Nogueira faz com que cada capítulo corresponda a um ano, em ordem cronológica. O primeiro capítulo do livro corresponde ao ano de 1896 e mostra como o grande cientista lord Rayleigh era refratário à idéia de que fosse possível criar um objeto "mais pesado que o ar" que voasse, enquanto que os finais, 2003 e 2006, contam a história pessoal do envolvimento do autor com o objeto do livro e dão novas informações e teorias sobre a história da aviação. Outra técnica de Salvador Nogueira no livro é a utilização extensiva de diálogos, o que acaba deixando a leitura de Conexão Wright-Santos-Dumont bastante ágil e agradável.

O livro mostra que os irmãos Wright eram donos de uma pequena oficina de venda, fabricação e conserto de bicicletas em Dayton. Wilbur foi o primeiro a ter a idéia de fazer o avião -- ele "sentia que sua habilidade como construtor de bicicletas serviria bem à tarefa. Nada como o mestre de confecção de um invento inerentemente instável, mas ainda assim manobrável e prático, conceber outro invento de instabilidade similar, conferindo-lhe a praticidade exigida para um meio de transporte. Era assim que ele via a coisa toda. Mera questão de engenharia". Como a oficina dos irmãos praticamente parava no inverno, era nesta estação do ano que eles trabalhavam -- sem qualquer patrocínio externo -- em seus inventos. O local escolhido para as experiências foi Kitty Hawk, no estado da Carolina do Norte. A partir do ano 1900 eles começaram a fazer testes de seu avião, o Flyer, até que conseguem fazê-lo voar, em 1903.

Três anos de experiências

Wilbur e Orville Wright faziam suas experiências secretamente porque queriam preservar as patentes de seu invento. Quando do primeiro vôo de Santos-Dumont, em 1906, praticamente não havia fotos públicas do avião dos irmãos de Dayton. De todo modo, na época era fato conhecido por praticamente todos os envolvidos com aviação que os dois americanos poderiam ter conseguido voar, já que eles mandavam cartas para vários governos tentando vender seu invento, além de tentar patenteá-lo. Depois que o 14bis levantou vôo de maneira oficial e reconhecida por todos, finalmente os irmãos Wright resolveram dar publicidade a seu Flyer, e seus primeiros vôos já eram de vários quilômetros, cobrindo distâncias muitíssimo maiores que aquelas que o avião do inventor brasileiro conseguia percorrer. Isto provava, portanto, que entre 1903 e 1906, Orville e Wilbur desenvolveram com grande competência o seu invento. Este fato, somado à grande quantidade de documentos -- como fotografias, correspondências, anotações detalhadas de seus diários e dos resultados de seus experimentos feitos antes de 1906 e posteriormente mostrados pelos irmãos de Dayton, são a prova definitiva de que eles foram os primeiros a voar com o "mais pesado que o ar".

Se uma das principais objeções brasileiros aos primeiros vôos dos Wright -- a de que eles foram feitos secretamente e, portanto, podem não ter ocorrido -- cai, como vimos acima, facilmente por terra, a segunda, a de que eles eram lançados a partir de catapultas (os irmãos Wright achavam que era mais prático utilizar pequenas distâncias para decolagem, e com este intento utilizavam força externa para ajudar a tirar o seu avião do solo) e não por seus próprios meios, também é derrubada por Salvador Nogueira.

Primeiro, porque os jatos de caça que são lançados de porta-aviões também são impelidos desta forma e nem por isto deixam de ser aviões. Depois, porque o vôo inicial do Flyer não utilizou catapulta e sim o vento favorável na ocasião -- aliás, exatamente como foram feitos os primeiros vôos do 14bis. Em outras palavras: se este argumento valer, o primeiro vôo de Santos-Dumont também "não vale".

Se praticamente elimina a possibilidade de que Alberto Santos-Dumont tenha inventado o avião (os argumentos finais de Salvador Nogueira no livro, comentando a respeito dos "muitos inventores" do aparelho são contraditórios com o que vem antes e, por isto, não podem ser muito levados em conta), por outro lado a leitura de Conexão Wright-Santos-Dumont reforça a idéia da genialidade do brasileiro. Ele criou um dirigível extremamente eficiente, o Número 6, que ganhou o prêmio Deutsch de La Meurthe, de 100 mil francos, por ter sido o primeiro a fazer um percurso em Paris que incluía dar uma volta na Torre Eiffel e voltar em menos de 30 minutos. Além disso, quando os irmãos Wright já voavam com seu Flyer, ele ainda nem pensava em projetar aviões. Deste modo, o tempo decorrido entre o início do projeto do 14bis e o primeiro vôo foi curtíssimo -- lembremos aqui que já havia muitos anos que outros inventores na França tentavam voar com uma máquina mais pesada que o ar e Santos-Dumont rapidamente passou na frente de todos eles.

Outra prova de genialidade do brasileiro é a criação, logo depois do 14bis, do extremamente eficiente Demoiselle, o menor avião da época. Se o brasileiro tivesse maiores ambições comerciais -- não as tinha provavelmente por ser riquíssimo, filho de um grande fazendeiro de café de Minas Gerais -- e não tivesse, desde a época da criação do seu segundo avião, começado a desenvolver uma esclerosa múltipla, Santos-Dumont certamente teria realizado ainda muito mais pela aviação mundial. Ele é um gênio que não pode, e não deve, ser esquecido. Mas o avião é dos irmãos Wright.

Fabricio Muller