FORA UMA NOITE insone para a Bajoriana uma vez que seu paciente enfrentava o período crítico para sua condição, quase não pregara o olho.  A febre do militar atingia nível absurdamente alto para aquela constituição não acostumada a isso.  O tom de seu rosto mudara do quase translúcido para o cinza escuro, suava profusamente em delírio febril. Gotas de suor brotavam instantaneamente na fronte irregular do Cardassiano, obrigando Anarys a se valer de um pano úmido para combater a febre.  Não fosse esse cuidado, o estranho já teria sucumbido horas atrás.

Neeska ministrou-lhe medicamentos no decorrer da madrugada na tentativa de retroceder o quadro clínico desfavorável, toda vez que se fazia necessário. Observou-o murmurar em delírio, palavras desconexas em kardasi[1], que até mesmo para o seu parco vocabulário na língua alienígena, eram suficientes para deduzir o quanto ele estava em agonia.

Por vezes o militar gritava e agitava os braços tentando deter algo ou alguém com olhos esbugalhados fitando o nada, obrigando a médica a se utilizar de toda a sua experiência para mantê-lo debaixo dos cobertores térmicos. E, apesar de muito debilitado, o oficial ainda detinha uma força descomunal.

Foi somente nas primeiras horas da manhã que finalmente o tulgryn conseguira encontrar sono tranqüilo.  Completamente extenuada, a médica aproveitou para dormir um pouco, já que não havia nada que pudesse fazer lá fora com aquele tempo.  Arranjou-se como pôde no espaço exíguo do abrigo enrolando-se em um pedaço de lona e pela primeira vez em quase dezoito horas relaxou.  Entretanto não por muito tempo...

Anarys tremia de frio e por mais que as rochas aquecidas gerassem calor não eram suficientes para aplacar os calafrios que percorriam seu corpo exausto.   Esfregava as mãos uma na outra, soprava nelas sem resultado, necessitava desesperadamente de uma fonte extra de calor.  Foi então que seus olhos esbarraram com a figura tranqüila do Cardassiano embrulhado em dois cobertores térmicos e a idéia assaltou-lhe a mente, mas imediatamente meneou a cabeça descartando a hipótese.  Contudo, reconsiderou seriamente o fato de que precisava do corpo febril do estranho para manter-se aquecida.  Tudo o que tinha que fazer era esquecer quem ele era e o que representava.

Resolveu-se.  Deitou-se junto ao estranho e timidamente aproximou-se até seu corpo gelado tocar o dele. O contato com aquela pele fina recoberta de escamas triangulares e estrias incomuns não fora tão desagradável assim. Além disso, o estranho tinha um aspecto peculiar que denotava asseio, unhas bem cuidadas, cabelos cortados à moda militar, o que contrastava com a maioria dos Cardassianos que tivera a oportunidade de tratar.  Concluiu que ele deveria pertencer a uma casta superior dentro da sociedade Cardassiana. Neeska teve de admitir admirada que a idéia não fora tão repulsiva como antecipara, cingiu aquele corpo febril e instantaneamente adormeceu de puro cansaço.

 


[1] Língua-mãe da raça Cardassiana.

 

Sobreviventes do Preconceito

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