Publicado originalmente
em 12 de maio de 2003


Direito Cardassiano: faz sentido?
Garantias Constitucionais e Processuais - paralelo entre o Direito Cardassiano e o Direito Brasileiro no aspecto processual penal 


 









 


por Luiz Felipe do Vale Tavares

No episódio “Tribunal”, do segundo ano de Deep Space Nine, o Chefe O’Brien se torna vítima de uma conspiração Cardassiana para condená-lo por atos de terrorismo por ajudar os Maquis e, conseqüentemente, manchar a imagem da Federação. É um excelente episódio, um dos melhores da série, se apoiando em atuações memoráveis – principalmente de Colm Meaney – e diálogos muito bem escritos. É interessante também por mostrar o funcionamento do ordenamento jurídico Cardassiano, muito singular, e seu papel perante a sociedade.

O intuito desse texto será traçar um paralelo entre o fictício sistema processual penal Cardassiano (visto no episódio) e o sistema processual penal brasileiro, com ênfase à importância do chamado Due Process of Law (Devido Processo Legal) e explicando brevemente algumas garantias proporcionadas por nossa Constituição Federal.

O Due Process of Law significa a observância estrita de princípios processuais como a Busca da Verdade Real, Contraditório e Ampla Defesa, Presunção de Inocência e outros, que serão analisados mais à frente.

É de certa forma rara a utilização de palavras inglesas no Direito Brasileiro, salvo no Direito Comercial, dando-se preferência para expressões latinas. As expressões inglesas mais comumente usadas são a Due Process of Law e a Fruits of Poisonous Tree (“frutos de uma árvore venenosa”, para demonstrar que o uso de provas ilegais pode macular todo o processo).

O presente texto será dividido em tópicos, dispostos de acordo com os acontecimentos no episódio “Tribunal”

1. O Direito de Permanecer em Silêncio: 

“Tribunal” começa com O’Brien saindo de férias da estação espacial Deep Space Nine em companhia de sua esposa Keiko. No percurso, o Runabout é interceptado por uma nave Cardassiana com ordem de prisão de O’Brien e o mesmo é levado sob custódia. Já aqui no começo do mencionado episódio temos uma amostra do sistema processual Cardassiano quando o oficial encarregado da prisão diz a O’Brien que é direito dele permanecer em silêncio, porém esse silêncio pode ser interpretado como sinal de culpa.

Durante séculos foi muito comum, em diversas culturas de nossa história, a atribuição de culpa pelo simples silêncio do acusado. Partia-se do princípio de que se acusado fosse mesmo inocente, ele não se valeria do silêncio, muito pelo contrário, usando de todas as formas possíveis para comprovar sua inocência. Por incrível que possa parecer, o Direito Brasileiro tinha – e ainda tem, logo explicaremos – uma previsão muito semelhante no art. 186, do vigente Código de Processo Penal, cujo texto diz: “Antes de iniciar o interrogatório, o juiz observará ao réu que, embora não esteja obrigado a responder às perguntas que lhe forem formuladas, o seu silêncio poderá ser interpretado em prejuízo da própria defesa”.

O texto desse artigo é contraditório, pois ao mesmo tempo garante o direito de silêncio do réu, porém impõe ameaças pelo exercício desse mesmo direito. É um verdadeiro absurdo. Imaginemos a situação de um réu perante o juiz quando este último poderia dizer: “O Sr. tem o direito de permanecer em silêncio, mas se o fizer...”; note-se aqui o claro caráter intimidatório desse aviso. O texto legal mencionado é originário de 1941, quando entrou em vigência o Código de Processo Penal.

É regra em nosso direito que se uma lei nova tratar diferentemente da mesma matéria, expressa ou tacitamente, a disposição legal anterior resta revogada. Foi o que aconteceu em 1988 ao entrar em vigor a nossa atual Constituição Federal, que em seu artigo 5º, LXIII, prevê que “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”. Essa disposição elevou a nível constitucional o direito de silêncio do acusado.

A Constituição Federal é a nossa Carta Magna, a principal fonte de direito em nosso país, como poder de revogar todas as disposições infraconstitucionais que lhe forem contrárias. Portanto, a partir de 1988, passou-se a entender que o mencionado artigo 186, do Código de Processo Penal, foi tacitamente revogado pela Constituição Federal no que diz respeito ao aviso de que o silêncio pode ser usado contra o réu, prevalecendo o entendimento de que não deve o juiz proferir esse aviso ao assegurar o direito de silêncio.

O Direito de Silêncio também se desdobra no princípio nemo tenetur se detegere, expressão latina que significa que o preso não é obrigado a se auto-acusar.

Infelizmente constatou-se no episódio em análise que o absurdo da situação de O’Brien, ao receber a indicação de que seu silêncio poderia importar em culpa, não estava tão longe assim de nossa realidade, tendo perdurado por um excessivo tempo entre 1941 e 1988. 

2. Tortura: 

Ao chegar em Cardássia, O’Brien é desprovido de suas roupas e submetido à extração de amostra de seu cabelo e de um molar dentário, prática comum em Cardássia, para fins de arquivamento de dados sobre o prisioneiro, o que caracteriza em absoluto o uso de tortura contra o preso.

Por tortura entende-se ser o ato de infringir a alguém intenso sofrimento físico ou mental. Portanto, não é necessário o emprego de sofrimento físico, caracterizando a tortura a imposição de sofrimento inteiramente mental. O fato de O’Brien ser submetido à nudez compulsória e ter um dente e parte dos cabelos extraídos já é suficiente para caracterização de sofrimento físico e, principalmente, mental.

A história da tortura no Direito remete à Antiga Roma tão somente, e não à Grécia ou Esparta como muitos podem pensar. A tortura era empregada basicamente para a obtenção da confissão do acusado. Com a invasão dos povos bárbaros e o fim do Império Romano, o uso da tortura sofreu modificações e não foi mais empregada com tanta habitualidade como outrora.

A partir do Século XII, o Direito Romano ressurgiu na Europa e a tortura voltou a ser empregada, sendo introduzida no Direito Comum e, posteriormente, no Século XIII, no Direito da Igreja, que usou e abusou dessa prática durante as inquisições.

Apenas no Século XVIII a tortura foi extinta como medida de obtenção de provas, mas permaneceu em uso em Portugal e na Espanha até meados do Século XIX.

No Brasil foram assinados diversos Tratados Internacionais onde nosso país se comprometeu a abolir a prática de tortura, como a Declaração dos Direitos do Homem da ONU, em 1948; a Convenção Inter-Americana para Prevenir e Punir a Tortura, em 1985; e o mais conhecido Pacto de São José da Costa Rica.

Nossa Constituição Federal contém vários dispositivos que visam garantir a proteção contra a prática de tortura, como por exemplo, “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante” (art. 5ª, III) e “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e mental” (art. 5ª, XLIX). É pertinente mencionar que o nosso Código Penal, também de 1941, não prevê o crime de tortura, sendo que essa prática somente se tornou crime tardiamente com o advento da Lei 9455, de 7 de abril de 1997. Antes disso poderia caracterizar os crimes de lesão corporal ou de constrangimento ilegal se ocorressem os resultados caracterizadores dessas infrações.

A tortura, prática nefasta, deve ser coibida de todas as maneiras possíveis, por ser um ato de afronta contra a dignidade da pessoa humana. No caso do emprego da tortura como forma de obtenção da confissão do preso, embora se reconheça pacificamente pela impossibilidade de alguém ser condenado unicamente com base na confissão (como veremos mais adiante), tal pode prejudicar em muito a sua defesa, principalmente nos procedimentos do rito do júri.

Aproveitando o ensejo de se ter mencionado o rito do júri, cabe aqui a breve menção de que, ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos e estamos acostumados a ver no cinema e na televisão, a competência do corpo de jurados no Brasil se restringe aos crimes dolosos (intencionais) contra a vida: Homicídio, infanticídio, aborto, participação no suicídio e genocídio. Esses são os únicos crimes que serão julgados pelo Tribunal do Júri, que é composto por sete cidadãos leigos sorteados para essa finalidade. Parte do fundamento de que os acusados por esses crimes serão julgados pelos seus pares. 

3. Momento do conhecimento do teor da acusação pelo acusado: 

No episódio em análise, O’Brien não pode conhecer o teor da acusação que lhe é formulada até o momento do julgamento. Essa também é uma prática de afronta contra a possibilidade de defesa do acusado frente ao Estado acusador, pois não teria a oportunidade de formular a tempo sua defesa antes do julgamento.

Em nosso ordenamento jurídico, via de regra, salvo nos casos de flagrante ou decretação de prisão provisória ou preventiva, o acusado toma conhecimento da acusação através da citação, que é o ato pelo qual se chama o acusado perante o juiz para o fim de apresentar a sua defesa.

Aqui no Brasil são garantias processuais absolutas o contraditório e a ampla defesa. O contraditório, para facilitar a explicação, se divide em contraditório substancial e contraditório formal. Por contraditório formal entende-se ser direito do acusado de ter ciência sobre todos os atos processuais praticados, seja sob forma de citação ou intimação. Por contraditório substancial entende-se ser o direito de apresentar defesa escrita, indicar provas e arrolar testemunhas. Portanto, o contraditório significa total participação no processo, com oportunidade de impugnar todos os fatos apresentados pela acusação. A não observância do contraditório pode levar à nulidade do processo, conforme dispõe o art. 564, do Código de Processo Penal. Já a ampla defesa significa a possibilidade irrestrita de se defender no processo, salvo nos casos de provas consideradas ilícitas, seja por sua natureza, seja pela forma de sua obtenção, que não podem ser levadas em conta no processo, com exceção apenas em casos extraordinários onde essa prova seja de suma relevância para se provar a inocência. A ampla defesa também pressupõe a presença do acusado nos atos processuais, sendo que se o acusado não for encontrado e não tiver constituído advogado, ficará suspenso o processo até que o mesmo seja encontrado.

No episodio, apenas pouco antes do início do julgamento, O’Brien descobre que está sendo acusado de entregar torpedos à facção terrorista Maquis para serem utilizados contra os Cardassianos.

Enquanto isso, na estação Deep Space Nine, o comandante Sisko e Odo passam a investigar a ocorrência e descobrem que O’Brien – ou outra pessoa se passando por ele - usou seu comando de voz para ter acesso à sala de armas e constatam o desaparecimento de alguns torpedos. 

4. Presunção Absoluta da Inocência: 

O que chama mais a atenção no sistema jurídico cardassiano é o fato do veredicto ser proferido antes mesmo do julgamento, considerando o acusado sempre culpado. Então de que serve o julgamento ? Como O’Brien vem a descobrir, o julgamento é apenas uma forma de mostrar à população cardassiana como o Estado prosseguiu em suas investigações, chegando à conclusão de culpa. Portanto, verifica-se que o julgamento não é o momento em que serão ouvidas a acusação e a defesa, com apresentação de provas e inquirição de eventuais testemunhas, e sim apenas um ato de ratificação dos procedimentos de investigação e condenação perante a população, ou seja, o “pão e circo” do povo.

Ultrajante, no mínimo, é o que se pode chamar de tal procedimento, pois não busca a verdade dos fatos e sim apenas o senso (equivocado) pela população de que a Justiça foi feita.

A Constituição Federal Brasileira possui um dispositivo de suma importância no processo penal no artigo 5ª, LVII, que diz que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Está aqui o Princípio Constitucional da Presunção Absoluta de Inocência, ou seja, que o acusado permanece na condição de inocente até a sentença final onde não caiba mais nenhum recurso, que é o significado do termo “trânsito em julgado”. E mesmo que alguém seja condenado injustamente, sempre lhe é possível impugnar a condenação através de uma ação chamada Revisão Criminal, sem prazo para o seu exercício e assegurada a indenização pelo Estado pelo erro cometido (se é que existe quantia que possa reparar os danos de se manter um inocente em cárcere).

Também é importante frisar que o nosso direito processual penal tem como intuito a chamada Busca da Verdade Real, ou seja, a realização de todos os atos possível para se chegar à verdade dos fatos da maneira como eles ocorreram, afastando-se presunções, omissões e ficções. 

5. Confissão como a Rainha das Provas? 

Durante o julgamento de O’Brien, seu advogado Cardassiano, que não visa defendê-lo, mas simplesmente propiciar o show que se espera para agradar a população, tenta a todo custo obter a sua confissão, mostrando à Corte que está arrependido dos atos criminosos praticados, aliviando assim a sua consciência. O intuito dessa fase do processo cardassiano é mostrar à população que o acusado não pode manter sua posição “equivocada” de inocente frente à infalível Corte, fazendo com que sua confissão seja interpretada no sentido de que o acusado se ressente dos atos atentatórios contra o Estado Cardassiano.

Na história do Direito, a confissão era considerada como a Rainha das Provas, pois acreditava-se que tinha valoração superior a qualquer outro meio de prova, principalmente por se respaldar nas próprias palavras do acusado. Temerário era esse pensamento, pois na maioria das vezes a confissão era obtida por meio de ameaças e torturas. Inocentes eram condenados não porque eram realmente culpados, mas sim porque não conseguiram resistir ao sofrimento que lhes foi imposto. Sabemos que o homem-médio, ou seja, o homem comum dentro dos perfis da sociedade, não resiste às torturas e ameaças a que é submetido, confessando qualquer coisa apenas para se livrar do sofrimento.

Hoje não se pode mais atribuir à confissão o caráter de Rainha de Provas, assim como também não se pode de modo algum atribuir valorações diferentes aos meios de prova existentes, como inquirição de testemunhas, exame do corpo de delito, perícias, provas documentais etc. As provas devem ser valoradas caso a caso de acordo com poder de convicção do juiz ou dos jurados, que são os destinatários das provas. 

 

6. Admissão de provas em qualquer fase do processo / Novos fatos: 

No episódio, Odo se voluntaria para oferecer assistência na defesa de O’Brien. Como ele era oficial encarregado da segurança na estação Terok Nor (atual DS9), recebeu atribuição para oficiar perante os julgamentos, atribuição essa ainda vigente mesmo após o término da ocupação cardassiano em Bajor. A presença de Odo já é por si só um pesadelo para o advogado Cardassiano nomeado para O’Brien, pois como já foi dito, ele está interessado apenas na condenação de seu cliente, enquanto que o Odo faz o possível para prolongar o julgamento em busca da verdade dos fatos da maneira como ocorreram.

Em certo momento Odo se manifesta sobre os fatos obtidos de que alguém falsificou a identificação de voz de O’Brien para obter acesso ao compartimento de armas na estação DS9 e furtar torpedos que seriam entregues aos terroristas Maquis. Nesse momento, a Magistrada avisa a Odo que esse procedimento é totalmente irregular, pois o momento do julgamento não é hora para apresentação de novos fatos ou provas.

Em nosso Direito o procedimento é semelhante em alguns procedimentos diferenciados, mas por outros fundamentos que não o do sistema Cardassiano. No rito comum, por exemplo, é possível a apresentação de documentos durante qualquer fase do processo. No rito do júri, por outro lado, o artigo 475, do Código de Processo Penal, dispõe que “durante o julgamento não será permitida a produção ou leitura de documento que não tiver sido comunicado à parte contrária, com antecedência, pelo menos, de três dias (...)”. O intuito desse dispositivo é evitar que uma das partes (acusação ou defesa) seja pega de surpresa com a apresentação da nova prova, pois deve estar já preparada durante o julgamento para se defender do teor das provas apresentadas. Quanto ao novo fato, se for apresentado e seja reconhecido como essencial para a decisão da causa e não puder ser realizada imediatamente sua verificação, o juiz dissolverá o conselho de sentença integrado pelos jurados e determinará as diligências necessárias para a verificação desses fatos, conforme dispõe o artigo 477, do Código de Processo Penal. 

Ao final do episódio, Sisko descobre que um Cardassiano disfarçado de humano gravou a voz de O’Brien e a modificou para obter acesso à sala de armas. Resta comprovado que todo julgamento não passou de uma armação para demonstrar ao povo cardassiano que a Federação não era capaz de conter os atos terroristas dos Maquis, sendo necessário o uso de força mais agressiva contra os mesmos.

Conseguindo prender e desmascarar o Cardassiano, Sisko o leva pessoalmente para Cardássia para apresentar a nova evidência perante a Corte para demonstrar a inocência de O’Brien.

Quando a magistrada cardassiana vê o infiltrador ingressando no salão de julgamento sob custódia de Sisko, imediatamente enxerga o risco de toda a armação ser exposta perante o povo, desacreditando o “infalível” sistema jurídico cardassiano. Antes que o dano seja causado, ela imediatamente absolve O’Brien sob a alegação de que o mesmo demonstrou ser uma pessoa honesta, com fortes laços familiares e que sua absolvição caracteriza na verdade uma reabilitação, mais importante do que uma condenação. Suas palavras de absolvição são de uma hipocrisia única, mas conseguem preservar, dubiamente, o crédito da Corte.

Concluindo, podemos constatar a importância de todas essas garantias processuais e constitucionais presentes no Direito Brasileiro, sendo imprescindível a sua observância em um verdadeiro Estado Democrático de Direito.