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Enterprise e a doutrina Bush

Como o leitor deve ter reparado, andei reduzindo o ritmo de publicação dos meus comentários dos novos episódios de Enterprise, série que há poucas semanas concluiu sua segunda temporada nos EUA. Todos que acompanham esta coluna regularmente perceberam meu entusiasmo com a série e a premissa, apesar dos temores de que Rick Berman e Brannon Braga, desgastados por mais de uma década de trabalho na franquia, fossem incapazes de transformar a boa idéia na boa série que todos gostariam que fosse.

Cinquenta e dois episódios depois da estréia, algumas coisas ficaram claras. A primeira delas é a de que Berman e Braga não conseguiram se desfazer de alguns dos clichês adquiridos durante os últimos 15 anos, nem mesmo retrocedendo 200 anos no tempo. A segunda é que, apesar disso, Enterprise está longe de ser tão ruim quanto apregoam seus detratores. Mesmo se contarmos somente o segundo ano, que acabou causando pior impressão do que o primeiro, há vários episódios que valem a pena ser vistos.

Apesar disso, alguma coisa me impediu de manter a dose habitual de entusiasmo pelo programa. Cada novo episódio, bom ou ruim, não fazia muito por me estimular a escrever outra página do guia. Alguns deles quase chegaram lá, como "Cogenitor" e "First Flight", mas, por algum motivo, não foram suficientes. Claro que, eventualmente, vou fechar a temporada --há tempo mais do que suficiente para revisitar esses segmentos e comentá-los antes do início do terceiro ano. Mas fiquei intrigado com esse desestímulo repentino e sombrio que se abateu sobre mim.

Poucos dias atrás, descobri o que mais estava me incomodando em Enterprise. Quando a série foi criada, Berman e Braga prometeram um formato mais "contemporâneo". Chego agora à conclusão de que está contemporâneo demais, e talvez não sem segundas intenções. Não sei se outras pessoas estão sentindo a mesma coisa, mas sinto um amargo gosto de "doutrina Bush" nos últimos episódios da série.

Nos últimos tempos, a imprensa estrangeira por várias vezes se dirigiu aos produtores-executivos da série para perguntar se o episódio final da temporada tinha alguma relação com eventos contemporâneos. A resposta padrão é a de que há paralelos incidentais, mas que nenhum deles foi planejado intencionalmente. Pode até ser. Mas não muda o fato de que eles estão lá, e eu não estou gostando nada deles.

Em "The Expanse", episódio que fechou o segundo ano e que na verdade consiste em virtual piloto para uma nova fase da série, a Terra sofre um ataque terrorista alienígena de dimensões sem paralelo. Uma sonda cria uma faixa de destruição da Flórida à Venezuela e mata milhões de pessoas, aparentemente sem nenhum motivo. Detalhe: a nave extraterrestre é tripulada, apesar de evidentemente consistir em missão sem volta. Suicida em veículo realiza ataque terrorista e mata em massa. Alguém aí ainda se lembra da última vez em que isto aconteceu no mundo real?

Até aí, na verdade, tudo bem. O que me incomoda é a reação de nossos astronautas do século 22 --supostamente o melhor que a humanidade tem a oferecer-- a esse ataque bárbaro. Trip Tucker, o dócil engenheiro do sul, tem agora sede de vingança pela morte de sua irmã, vítima do ataque. Jonathan Archer, o ex-explorador pacífico, garante a seu amigo que eles farão "o que precisa ser feito", com um ar inconfundível de predador em busca de sua presa, enquanto a Enterprise navega rumo à Expansão Délfica. Essa é a resposta da humanidade às provações que a ela se apresentam? Esse é o melhor que temos a oferecer ao Universo? Eu acho que não. Gene Roddenberry certamente achava que não. Ninguém em sã consciência acha que sim.

George W. Bush acha que sim. À caça de Osama bin Laden, o presidente norte-americano promoveu uma guerra no Afeganistão, derrubou o governo local, diz ter desmantelado a organização terrorista Al Qaeda e deixou o país aos pedaços. Prometeu ajudar na reconstrução, mas não está fazendo. Em vez disso, aproveitou a deixa para empreender nova guerra, desta vez contra o Iraque, sob falsas evidências de desenvolvimento de armas de destruição em massa por parte da ditadura de Saddam Hussein. Mais uma vez, um país foi demolido no processo, e o governo derrubado. Até a ONU foi atropelada no caminho. Hoje os EUA prometem que vão ajudar na reconstrução do Iraque, promessa não-cumprida no Afeganistão. Em retrospecto, é difícil acreditar que realmente vão fazê-lo.

Não sou contra a discussão de questões contemporâneas, e mesmo de fundo político, em Jornada nas Estrelas. Muito pelo contrário. Uma das grandes forças da Série Clássica foi justamente introduzir discussões relevantes ao presente num contexto de "futuro possível". O problema é que hoje poucas coisas são apresentadas em Enterprise como DISCUSSÕES.

No clássico "A Private Little War", faz-se um claro paralelo à Guerra Fria e ao conflito no Vietnã. Kirk decide interferir na política de um planeta fornecendo armas e treinamento para um dos lados, compensando pela ação dos Klingons, que está fazendo a mesma coisa do outro lado. Kirk argumenta que esse é o único meio de preservar os dois lados, através do equilíbrio de forças. É o que ele acaba fazendo, numa defesa da interferência americana no Vietnã. Mas, apesar de sua decisão final, McCoy estava lá para gritar o tempo todo, "Está ficando maluco, Jim? A solução não é armar essa gente e alimentar um conflito!" Você pode concordar com Kirk, você pode concordar com McCoy, mas pelo menos você tem uma escolha --a redação do roteiro demonstra que há um dilema.

Em Enterprise, muitos dos dilemas apresentados são artificiais, e muitos dos dilemas reais são omitidos. Algumas coisas revoltam e são tão sutis que passam até por mensagens subliminares. Ao final de "The Crossing", a Enterprise finalmente consegue expulsar os alienígenas hostis que estavam tomando os corpos dos tripulantes (num estilo quase "sci-fi-trash", rememorando os velhos tempos de "The Lights of Zetar"), e Archer não tem a menor dúvida ao ordenar Reed a disparar seus torpedos e explodir a nave inimiga, sem choro nem vela. Foi-se o tempo em que Kirk se recusava a matar o capitão Gorn...

Pior do que isso, me frustra o fato de que a terceira temporada da série, numa tentativa de restaurar níveis de audiência aceitáveis (o programa está caindo pelas tabelas nos índices Nielsen), transformou o desdobramento da "doutrina Bush" no tema central da série. "The Expanse" abre caminho para duas rotas, ambas que não me agradam.

A primeira é explorar o lado de "perigo intenso e misterioso" da Expansão Délfica, se apoiando em roteiros 'high-concept' como os que pulularam durante as sete temporadas de Voyager e os últimos anos de A Nova Geração: premissas malucas que expõem os personagens a situações inusitadas, com sinopses redutíveis a uma frase. Não é exatamente algo que me agrade.

A segunda é a ideologia da "doutrina Bush" travestida na caça aos Xindi --a personificação de Osama bin Laden e seus asseclas num contexto supostamente mais complexo de Guerra Fria Temporal e de reversão de causa-efeito, misturando à analogia básica elementos 'high-concept'. Também não é boa, e pode contaminar tudo que há de bom na série com esse gosto amargo de manipulação da opinião pública americana (rotineiramente frágil a esse tipo de artimanha).

Não acho que Berman e Braga sejam intrinsecamente canalhas. Acho apenas que estão passando dos limites na busca pela audiência e pela manutenção do programa. E atitudes como atirar T'Pol num pon farr artificial (como aconteceu no recente "Bounty") só para aumentar o sex appeal do programa podem acabar sendo as posturas mais inofensivas nessa luta pela sobrevivência no mundo selvagem da TV americana.

Os Vulcanos podem ter razão afinal. Talvez Berman e Braga não estivessem prontos.

Salvador Nogueira, jornalista, escreve regularmente sobre
a nova série de Jornada nas Estrelas para o
Trek Brasilis