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Um novo mito para o culto de Jornada

Às vezes, a vida prega peças na gente. Eu terminei minha última coluna, que falou basicamente do que seria de nós na eventualidade do cancelamento de Enterprise, exaltando a importância dos fãs na continuidade da franquia, com suas produções independentes, enquanto Jornada não voltasse a ser um produto comercialmente viável.

Qual não é a minha surpresa quando, ao anunciar a renovação da série para mais um ano, a diretora de programação da UPN, Dawn Ostroff, mencionou o esforço dos fãs como uma peça instrumental na decisão da emissora. Segundo ela, a rede teria recebido toneladas de cartas pedindo pela volta de Enterprise na temporada 2004-2005, provando que ainda há um público fiel à série.

Ora, que há um público fiel, todos nós já sabíamos. E o que todos nós também sabíamos é que esse público, hoje em dia, não passa de meia dúzia de gatos pingados. Os índices de audiência da série, esmagada durante a última temporada por "Smallville", falam por si mesmos. Num esforço sobre-humano, foi possível equiparar a audiência de "Zero Hour" (último episódio do terceiro ano) com a conclusão da segunda temporada, "The Expanse". Mas não houve registro de melhora nos índices de audiência durante toda a temporada. Muito ao contrário, esses números caíram, com relação ao ano anterior.

Se os executivos estivessem realmente felizes com Enterprise, não teriam deixado para a última hora a confirmação de que a série estaria de volta após o hiato do verão americano. Tampouco teriam mudado a série das noites de quarta-feira para as noites de sexta --mesmo horário destinado à Série Clássica na NBC durante a temporada 1968-1969, o que resultou no cancelamento do programa.

É fartamente conhecido o fato de que Enterprise tem por público-alvo jovens adultos do sexo masculino. Desde o tempo de Kirk e Spock, jovens adultos do sexo masculino já tinham esse hábito de não passar as noites de sexta-feira vendo televisão. Ou Enterprise na verdade nunca atingiu seu público-alvo (e neste caso haveria pouco impacto na mudança de horário), ou a UPN simplesmente colocou a série no horário em que ela poderia causar menos "danos" aos índices de audiência da rede.



De outro lado, sabemos que a Paramount Pictures tinha todo o interesse em ver Enterprise atingir o quarto ano. Com cerca de 100 episódios, uma série de televisão pode render muito mais dinheiro ao estúdio que a produziu, pois justifica a venda dos direitos de reprise a estações locais de TV espalhadas pelos Estados Unidos --procedimento de veiculação conhecido pelo nome de syndication.

Todas as séries de Jornada já produzidas entraram nesse circuito e até hoje rendem fartos dividendos ao estúdio. Se Enterprise terminasse ao final do terceiro ano, com 76 episódios produzidos, até poderia ir ao mercado de syndication (a Série Clássica conseguiu, com 79 episódios), mas seu valor seria muito maior caso chegasse perto da marca de 100. Depois disso, em compensação, fica cada vez mais difícil justificar a produção de novos episódios --já existe um número suficiente para levar a série a syndication, e mais segmentos não trariam um bônus significativo.

É importante lembrar que tanto Paramount quanto UPN são empresas do mesmo dono --o poderoso conglomerado Viacom, que, por sinal, está passando por alguma turbulência com a troca de cabeças no comando da companhia. Nada mais natural, portanto, que a empresa-mãe tentasse negociar com suas filhas um acordo que deixasse todo mundo feliz. Havia, portanto, uma tendência mercadológica à renovação de Enterprise por mais uma temporada.

Claro, Dawn Ostroff não poderia chegar em sua apresentação da programação da UPN para 2004-2005 e dizer aos anunciantes: "Enterprise nós renovamos só para que a Paramount ficasse feliz, mas nem se animem muito, pois já sabemos que não vai dar audiência nenhuma". Ninguém faz negócios desse jeito. Em vez disso, ela disse: "Recebemos um monte de cartas e achamos que existe um público para essa série; e mais: achamos que as sextas-feiras não farão mal a ela".

As duas versões estão aí. Em circunstâncias normais, não seria difícil escolher a mais provável. Mas estamos falando de Jornada nas Estrelas, cuja série original foi recentemente eleita pela revista "TV Guide" como o programa mais cultuado da história da televisão. É uma marca acostumada a criar mitos. Com o comentário de Dawn Ostroff, estamos testemunhando o nascimento de mais um deles.

Em alguns anos, ouviremos da boca dos fãs que foram eles que salvaram Enterprise do cancelamento, durante sua terceira temporada. Que foi a dedicação dos trekkers que evitou que a série, protagonizada pelo excelente Scott Bakula, caísse no esquecimento. Eles terão até mesmo as declarações da UPN para provar que foi assim que aconteceu!

É tão típico de Jornada nas Estrelas... não? Senão vejamos.

Durante o terceiro ano da série original, houve um episódio chamado "Plato's Stepchildren". A história era besta e os personagens foram maltratados até dizer chega. Mas, em dado momento, os alienígenas malvados da semana obrigam Kirk a dar um beijo na tenente Uhura. A produção causou o maior alvoroço na época, pois nunca a televisão havia mostrado um beijo entre um branco e uma negra.



A NBC temia que suas afiliadas no sul do país nem exibissem o episódio, ou mesmo que o público mais conservador se revoltasse contra o programa. Tentaram de todas as formas tirar a cena do episódio. William Shatner e Nichelle Nichols lutaram bravamente para manter o roteiro como originalmente escrito. Mas a verdade é que a cena que foi ao ar, feita para não "agredir" os conservadores, não teve um beijo --a câmera foi posicionada de modo a dar essa impressão, mas os lábios dos atores jamais se tocaram. Shatner conta essa história em suas memórias.

Moral da história: o primeiro beijo interracial da televisão na verdade não foi um beijo! Mesmo assim, o mito prevalece até hoje, e os fãs vivem lembrando o episódio como um dos grandes feitos de Jornada nas Estrelas.

Não que o programa não tivesse realmente valor --tinha. Seus ideais sempre foram contrários ao preconceito racial, com episódios que ilustravam fartamente isso; Uhura e Sulu, representando minorias étnicas, sempre foram mostrados como oficiais competentes e tão responsáveis quanto os demais na tripulação da Enterprise; e é verdadeira a história de que Martin Luther King, grande líder na defesa dos direitos dos negros nos Estados Unidos, de fato era um dos apreciadores do programa. Jornada teve seus méritos e eu os reconheço plenamente. Mas não adianta forçar a barra --a série jamais conseguiu subverter o sistema. Por mais que os produtores, roteiristas e atores quisessem, o sistema impediu que o primeiro beijo interracial ocorresse em "Plato's Stepchildren".



E o sistema teria impedido a renovação de Enterprise para uma quarta temporada, se não houvesse interesse econômico que a sustentasse. Nunca a UPN faria algo pelos lindos olhos dos fãs; Jornada, para ela, é um negócio, como outro qualquer.

Mas aí o leitor pode lembrar: e quanto a Bjo Trimble, fã que organizou, com a ajuda de Gene Roddenberry, a campanha de cartas que salvou a Série Clássica durante a segunda temporada (e, com isso, permitiu o futuro de Jornada nas Estrelas, dando à série uma chance de encontrar seu público em syndication)? Isso também é um mito falseado e romantizado?

Não, não é. Aliás, aí está um exemplo legítimo da força dos fãs. Por quê? Porque, na época da Série Clássica, ninguém sabia que o mercado de syndication podia ser tão valioso. Não havia TV a cabo e as redes nacionais eram só três: NBC, ABC e CBS. Agora, existem outras três, FOX, WB e UPN, e o mercado de canais por assinatura multiplicou as possibilidades de veiculação de programas por syndication. Naquela época, jamais uma série seria justificada por seu lucro futuro em syndication. Hoje, há séries produzidas especialmente para o syndication, sem passagem por uma grande rede (aliás, A Nova Geração e Deep Space Nine foram as séries que abriram esse filão).

Além disso, naquela época, os executivos das redes de TV ainda não conheciam a capacidade de organização e coordenação dos fãs. A tonelada de cartas pareceu na ocasião um fenômeno legitimamente único e extraordinário. Mas, desde então, os manda-chuvas já aprenderam uma coisa ou duas sobre isso. A série "Roswell" foi carregada nas costas pelos fãs durante uma temporada, e agora Enterprise deu mostras do que seus seguidores são capazes. Não foram só cartas; sites como o SaveEnterprise.com promoveram campanhas de arrecadação para publicação de anúncios de apoio à série em periódicos especializados na indústria do entretenimento, como o "Hollywood Reporter" e a "Variety". Coisa séria.



Mas de nada teria adiantado, se não houvesse uma justificativa econômica. É por isso que não tivemos, até hoje, a série com a Excelsior e Hikaru Sulu --nada, em termos financeiros, justificou a execução do projeto. Fãs apaixonados são bons instrumentos de marketing, mas não são a peça determinante em Jornada nas Estrelas. É um negócio. É Hollywood.

Ainda assim, não há motivo para se envergonhar disso. Na verdade, a conclusão da terceira temporada de Enterprise foi a melhor coisa que aconteceu em Jornada desde o fim de Deep Space Nine e quem já viu "Zero Hour" sabe que o futuro promete --ao menos em termos de qualidade dos episódios.



Quanto à audiência, só nos resta torcer para que as sextas-feiras sejam melhores que as quartas. A sorte favorece os audazes, diz o ditado. Resta saber se os audazes também conseguem fazer dinheiro...

Salvador Nogueira, jornalista, escreve regularmente sobre
a nova série de Jornada nas Estrelas para o
Trek Brasilis