Publicado em
15 de fevereiro de 2004


Céu e Inferno
É possível duas séries com limitações parecidas terem aceitação tão diferentes uma da outra?


 









 


por Fernando Rodrigues

Tenho nos últimos dois anos acompanhado com interesse e carinho a exibição de uma série no Brasil, e muitas vezes me pergunto por que. Como muitos críticos apontam, esta série não apresenta arco de histórias, se concentrando em desenvolver o começo, meio e fim de suas tramas em um único episódio (e alguns raros episódios duplos). O desenvolvimento de personagens a cada episódios é mínimo, quando não nulo. Boa parte de cada episódio apresenta diálogos carregados de conceitos científicos, muitos deles incompreensíveis para a maioria dos espectadores, e são justamente estes conceitos científicos que promovem a resolução da trama. Um episódio padrão da série conta não uma, mas pelo menos duas histórias diferentes, cada uma envolvendo um ou mais integrantes do elenco. Em compensação, a cada semana somos brindados com efeitos visuais fabulosos, de encher os olhos. A seqüência de abertura, apresentando uma edição de imagens primorosa ao som de uma música popular moderna imediatamente nos inspira a acompanhar cada episódio. A preocupação com os conceitos científicos apresentados permite que especialista façam parte da equipe de produção, assessorando permanentemente os roteiristas. Uma legião de fãs existe na internet, esforçados em criar guias de episódios, compilar informações, e escrever fãs fictions. Os mais apaixonados debatem se um dos personagens se envolverá sentimentalmente com o personagem A ou o personagem B. Seu público fiel inclui cientistas de instituições renomadas como a NASA e o MIT. E, principalmente, um forte merchandising leva a criação de inúmeros produtos, dentre eles livros com tramas originais baseadas na série, e outros explicando a ciência por trás dos roteiros.

Não, não estou falando de Enterprise.

C.S.I – Crime Scene Investigation, estreou na televisão americana em 2000, fruto da imaginação de Anthony E. Zucker, o criador de série, e do produtor Jerry Bruckheimer, mais famoso pela produção de filmes como “Armaggedon”, “A Rocha”, “Con-Air” e “Pearl Harbor”. Apesar de apresentar muitas das críticas que são feitas a Enterprise, a série rapidamente se tornou um hit, galgando posições na audiência e superando série populares como “Friends”. O sucesso foi tanto que, com apenas dois anos de exibição, um primeiro spin-off foi criado, “CSI Miami”, que consegue obter índices tão bons quanto os da série original e tem mantido o pique, já em sua segunda temporada. Sua popularidade cresceu influenciando conhecidos fãs de Jornada, como por exemplo os responsáveis pelo grupo de sites Trek Nation (que congrega, entre outros, os populares Trek Today e Trek BBS), que criaram o site CSI Files.

Como podem, então, duas série que apresentam semelhanças básicas em seus conceitos primordiais, apresentarem um desempenho tão extremo uma da outra? È possível fazer uma comparação entre as duas, e deste modo tentar entender onde Enterprise tem falhado?

Sim e não. Antes de mais nada, precisamos destacar algumas diferenças substanciais entre as duas séries. A primeira, e mais importante, é em qual emissora são transmitidas. C.S.I. é exibida nos Estados Unidos pelo canal CBS, uma das maiores redes do país, com cobertura Nacional, enquanto Enterprise é exibida pela UPN, modesta rede que não abrange todo o país. Deste modo, ao compararmos a audiência de ambas, é importante lembrar que uma possuí um mercado potencial muito maior do que a outra. Além disso, C.S.I. é um seriado policial, notoriamente um gênero de grande popularidade dos EUA, e portanto apresenta uma assimilação muito melhor entre o público do que um seriado escapista de ficção científica.

As diferenças principais, porém, param por aí. C.S.I., tal como Enterprise, foi criada com o desafio de vencer em um gênero onde praticamente tudo já havia sido explorado. Nas últimas décadas, a televisão americana permanentemente exibiu seriados policiais, alguns de muito sucesso, outros fracassos retumbantes. Na televisão moderna, principalmente em um gênero desgastado, a palavra de ordem é inovar. E C.S.I. fez justamente isso, inovou.

O que é essa série? Basicamente, cada episódio mostra a investigação de um ou mais crimes, normalmente homicídios. O pulo do gato aqui, que garantiu a renovação do gênero, é que não vemos um ou mais policiais entrevistando testemunhas e, ao final, participar de uma perseguição ou de um tiroteio para prender os culpados. Pelo contrário, os personagens principais nem sequer são policiais, na real acepção do termo. São cientistas. A magia da série é que ferramenta científicas reais são usadas para se realizar a investigação. Normalmente, os únicos tiros vistos em cada episódio são aqueles que criaram a vítima. Mas o mais importante aqui é que toda ferramenta científica empregada é real, e pode ser encontrada em uso; algumas vezes tal uso não é tão comum, restrito por exemplo aos laboratórios do F.B.I, mas ainda assim nada apresentado é irreal ou usado de forma irreal. Há liberdades poéticas, claro, tais como um exame de DNA ser realizado em questão de minutos. Mas tais liberdades resultam da necessidade de se resolver o caso nos 45 minutos do episódio, e não em criar artifícios onde o problema é resolvido magicamente no último instante.

Mais ainda: a proposta da série é a de que o espectador investigue os crimes junto com os cientistas. Cada uma das evidências é apresentada ao público, assim como todos os suspeitos, ao longo da investigação, e nos é dada a oportunidade de tentar descobrir o criminoso junto com os personagens, ou mesmo antes deles. Imagine que, a cada semana, temos a oportunidade de nos perguntarmos “quem matou Odete Roithman”. Essa é a sensação passada por C.S.I. O primeiro jogo baseado na série, lançado inclusive no Brasil, mostra o quão transparente a série é: no jogo, somos um dos integrantes da equipe de cientistas, e é nossa responsabilidade investigar cinco casos distintos, usando as mesmas ferramentas presentes no episódio. Mesmo sem sequer entender os conceitos por trás dessas ferramentas, qualquer um consegue, baseados apenas no que foi mostrado na série, realizar a investigação e resolver os casos.

É curioso notar que Naren Shankar é um dos co-produtores executivos. Para quem não lembra, Shankar foi editor de estórias para A Nova Geração, consultor científico para Deep Space Nine, e roteirista em Voyager (é dele o roteiro do episódio "Heroes and Demons”).

Se o formato original de Enterprise é muito semelhante ao de C.S.I., os produtores da primeira falharam em vencer, justamente, os mesmos desafios. Quando da criação da série, sob os índices de audiência de Voyager, a proposta de Rick Berman e Brannon Braga era, justamente, inovar. Criar algo diferente de tudo o que já fora feito em Jornada. Justamente por isso, a série foi criada para se passar no século 22, deixando os roteiristas com uma certa liberdade de ação. Entre elas, o fato de os humanos ainda estarem “engatinhando” na exploração do espaço, e a inexistência da Diretriz Primeira. “Essa não é a Jornada de seus pais”, declarou Rick Berman em certo ponto.

Tal inovação, porém, se restringiu mais a valores estéticos do que a conteúdo. Uma sensualidade maior foi embutida na série desde o seu primeiro episódio, com a infame cena da câmara de descontaminação. A seqüência de abertura ganhou uma canção pop, com o intuito de modernizar a série e criar um vínculo maior com nossa realidade. Uma dose maior de conflito do que em séries predecessoras foi criado, principalmente entre humanos e vulcanos. Com relação a conteúdo, porém, pouco foi desenvolvido para realmente diferenciar a mais recente encarnação das demais. Muitos episódios poderiam facilmente terem sido escritos para Voyager ou A Nova Geração.

E um dos maiores defeitos de todas as séries continuou existindo: episódios escritos com base em High Concepts, com resolução baseada em conceitos pseudo-científicos que surgem como mágica no último instante. Muito em cada episódio de Enterprise acaba caindo num padrão já conhecido, e o fato de ser Jornada, e todo mundo já ter visto algo assim antes, acaba afugentando a audiência.

Se Berman e Braga perceberam isso, é incerto. A terceira temporada apresentou, por um lado, um esforço de se criar um arco de histórias, fugindo do conceito inicial de episódios com trama fechada. Simultaneamente, porém, a sensualidade na série foi ampliada, culminando na exibição das nádegas de T’Pol, no episódio “Harbinger”. A série, em si, continuou a mesma, apenas com uma mudança em sua premissa original. Uma das principais críticas, porém, continua sem solução: Jornada sempre foi um modo de explorar a condição humana sob um invólucro de ficção científica, e tal estudo até o momento tem aparecido de modo bem esparso.

C.S.I., também, teve de vencer um grande desafio para manter sua audiência: vencer as limitações de sua proposta. Por mais crimes distintos que possam ser criados, se a série se concentrasse em uma estrutura definida, e repetida episódio após episódio, seu sucesso seria efêmero. Entra aqui o maior trunfo da série: seus produtores e roteiristas não têm medo de se arriscar. Discussões pertinentes são levantadas nos episódios, tais como racismo, porte de armas, política, drogas, delinqüência juvenil e pena de morte. Não há receios em se mostrar crianças criminosas com tanta malícia quanto adultos. Nada é sagrado para os roteiristas. O episódio da segunda temporada, “Cats in the Craddle”, mostra uma menina que mata sua vizinha apenas para ficar com seu gato, sem qualquer remorso ou ressentimento. Na quarta temporada, o episódio “Homebodies” mostra um homem que, ao dar um tiro para o alto no quintal de sua casa, acaba matando uma mulher do outro lado da cidade. Os comentários da equipe, enquanto interrogam os suspeitos e trabalham as evidências, nos levam a pensar, justamente nos absurdos de nossa sociedade.

E, cereja no bolo, nem sempre o responsável é descoberto. Nem sempre as evidências são suficientes para se prender um assassino. Muitos dos episódios são escritos baseados em casos reais investigados por detetives forenses, o que provoca uma relação de proximidade de certo modo assustadora: e se isso acontecesse comigo?

E, se em Enterprise temos o estereótipo de capitão heróico, um líder nato, criado justamente para se manter fiel aos demais segmentos da franquia, C.S.I. não podia ter um protagonista mais atípico: Gil Grisson (William Petersen) é um cientista excêntrico, com sérias dificuldades de comunicação com os membros de sua equipe, com seus superiores e com a mídia. Vive em um mundo recluso, com sua coleção de insetos, e muitas vezes sequer percebe os atritos que causa em sua equipe. Um personagem humano, repleto de falhas, mas com uma características importante: sua inteligência. Ele é o melhor dos investigadores, capaz de bolar experimentos diversos para comprovar suas teorias, com percepção para detectar evidências onde nenhum de seus companheiros consegue. Essa dicotomia entre ser um homem repleto de defeitos, e ainda assim brilhante, mais uma vez aproxima o público, que consegue se identificar prontamente com o personagem.

C.S.I é, então, melhor que Enterprise? Ou possui um conceito melhor? Isso não pode ser dito. O que é importante notarmos é que apesar de possuir limitações muito semelhantes às de Enterprise, os responsáveis por C.S.I. conseguem, facilmente, vencer estas limitações com roteiros inteligentes, bem estruturados, ousados e imprevisíveis. Essa é a grande diferença entre as duas série. Os produtores de Enterprise deveriam tentar seguir este caminho, antes de apelarem para a nudez de seus personagens.

 

Fernando Rodrigues da Silva é co-editor do Trek Brasilis e acredita que as evidências nunca mentem.