O dublador que criou "Jornada nas Estrelas"

Por Luiz Felipe Tavares

Como muitos devem saber, a dublagem atual da Série Clássica não foi a primeira realizada para a série no Brasil. Os fãs mais novos conhecem o trabalho feito pela VTI Rio, que dublou os dois primeiros anos sob encomenda da TV Manchete em 1991, e muitos anos depois dublou o terceiro ano para exibição pela TV Record e USA Channel.

Em um passado não tão distante, em 1967, a extinta TV Excelsior trouxe para o Brasil uma nova série norte-americana chamada Star Trek. O trabalho de tradução e dublagem ficou a cargo da empresa AIC de São Paulo, que encarregou a Emerson Camargo o trabalho de traduzir os termos “alienígenas” até então. O próprio Camargo optou em dublar o capitão Kirk. Foi o seu trabalho que deu origem às palavras em Língua Portuguesa tão corriqueiras no vocabulário dos trekkers de nosso país: “Jornada nas Estrelas”, “torpedos fotônicos”, “teletransportador”, “Magro”, “dobra espacial”, entre tantas outras.

O Trek Brasilis entrevistou Emerson Camargo sobre seu trabalho e envolvimento com Jornada nas Estrelas. Confira a seguir o que ele tem a dizer.


 









 

 

 

 

 

 

 

 

 

Trek Brasilis: O senhor não só ficou encarregado da tradução da Série Clássica, como também optou por dublar seu protagonista, o capitão Kirk. O que o despertou para a série e os personagens a ponto de levá-lo a escalar a si mesmo para o papel?

Emerson Camargo: Com “Jornada nas Estrelas” – título criado e sugerido por mim – foi “amor à primeira vista”. Leitor de Asimov, Bradbury, Clark etc., eu já era aficionado em ficção científica. Quando a série chegou para ser dublada na AIC eu já era tradutor, dublador e diretor de dublagem da casa. Vi a série e imediatamente pedi para produzir a versão. Diga-se também que todos os acertos e erros que esta primeira versão (Série Clássica) possuem são meus. Ninguém interferiu, nem a distribuidora da série no Brasil, a Brascontinental, nem a direção artística da AIC, que normalmente tinha a palavra final na dublagem. William Shatner era jovem, pouco mais velho que eu, e como me identifiquei demais com a série e já dublava heróis (o que em dublagem precisa de uma certa prática) achei que a melhor escolha seria eu mesmo.

TB: A tradução de Jornada nas Estrelas era obviamente um desafio incrivelmente complexo. O senhor se lembra de suas principais dificuldades na época para realizar o trabalho? Foi o senhor mesmo quem inventou a célebre frase “dobra espacial” traduzida do original “Warp”?

Camargo: É preciso que se saiba que fiz a versão de Jornada pioneiramente, isto é, sem referências anteriores. E mais, podem não acreditar agora, mas na época ela foi encarada com uma série menor, sem grandes chances de fazer sucesso no Brasil, assim como "National Kid". Acostumado já à tradução - comecei como tradutor - sabia que versão de filmes para TV não pode ser uma tradução literal, tem que haver uma natural adaptação do texto. Leitor de ficção-científica, então procurei adaptar à dublagem os termos principais da “gíria” da navegação estelar. ”Warp” é entortar, curvar... Repare que “warp” tem a mesma labial que “dobra” e como já havia lido sobre dobra espacial, nada mais lógico que “warp one” ser “dobra um”... Traduzir “phaser” não havia sentido, então... e assim por diante. Hoje percebo que cometi alguns enganos também, mas foi um grande exercício de criatividade e prazer traduzir Jornada.

TB: A escolha das vozes para o elenco, naquela época, foi feita com base em quê? Sabe-se que nos anos 1960 e 1970, a qualidade "radialista" dos dubladores era muito mais valorizada do que hoje. Isso ocorria em detrimento da similaridade de vozes?

Camargo: Gostem ou não, todas as vozes foram escolhidas por mim. O critério? Opção pessoal. Explico. Eu queria liberdade de movimentos, trabalhar cada personagem segundo a visão do Gene Roddenberry, como ele havia criado no original, e para isso nada melhor que trabalhar com novatos. Ancorei na Uhura a experiência de Helena Samara e lancei em seus primeiros papéis fixos de série: Carlos Campanille (Scott), Eleu Salvador (Sulu), Neville George (Dr. McCoy ) e escolhi Rebello Neto para o Spock justamente porque não sendo rádio-ator, ele não possuía aquela interpretação cheia de nuances tão comum na época, visto que o Spock requeria uma dublagem reta, lisa, com pouca ou nenhuma inflexão de voz.

TB: Por que outra voz foi escolhida para dublar a apresentação da série? O senhor nunca lamentou não poder ter dito a frase "audaciosamente indo onde nenhum homem jamais esteve"?

Camargo: Resolvi separar a abertura da série dando um toque mais solene, aliás, como se fazia na época, convidando um locutor para a gravação da abertura. Mas, sim, me arrependi depois de não poder dizer a frase famosa que, por sinal, escrevi e reescrevi várias vezes ("corajosamente indo onde homem algum nunca esteve?"...ou ..."onde a humanidade nunca esteve antes?"..etc..) até a versão final.

TB: Antes de pegar Jornada, o senhor trabalhou na adaptação em português do programa japonês "National Kid". O que você viu de semelhança e de contraste no trabalho de dublar esses dois supostamente aparentados gêneros de televisão?

Camargo: Dublar o National Kid pra mim foi uma experiência única porque foi a primeira série em que dublei o personagem principal. Na ocasião, muito jovem, eu me iniciava em dublagem e só fazia pontas. Porém, escolhido num teste de voz, fiz o papel. Semelhanças só vejo no que se refere a serem ambas séries pioneiras em seus gêneros, pelo menos aqui no Brasil, e o seu caráter futurístico de ficção científica. No mais, a qualidade de produção das duas é tão diferente quanto água do vinho e aí está dito tudo. Textos, atores, efeitos etc. National Kid abriu as portas para uma interminável série de super-heróis japoneses, mas Jornada foi um marco mundial na produção de ficção científica de boa qualidade.

TB: Quando do relançamento do "National Kid" em video há alguns anos, o senhor participou novamente da nova dublagem. Qual foi a sensação de retornar ao personagem ? Por acaso havia algo que o desagradava no trabalho original e que procurou melhorar na nova dublagem?

Camargo: Foi excelente realizar a redublagem de National Kid. Quando da primeira versão eu iniciava na profissão e fiz um trabalho de principiante como ator. Na redublagem, supervisionei a tradução, escolhi as vozes e dirigi, além é claro de redublar o Massao Hata. Foi muito gratificante. Gostaria de poder fazer o mesmo com Jornada.

TB: O senhor teve algum envolvimento na escalação de Denis Carvalho como seu sucessor na voz de Kirk? E quanto a Astrogildo Filho?

Camargo: Não, nenhuma influência em nenhuma das duas vozes posteriores. Eu me desliguei completamente da AIC.

TB: O que levou a TV Manchete a encomendar uma nova dublagem para a série no final dos anos 1980? Os tapes com a dublagem original estavam mesmo irremediavelmente perdidos? Alguns seriados dos anos 60 e 70 retornaram à TV nos anos 90 em cópias novas mantendo a dublagem original como, por exemplo, “Batman” e “O Planeta dos Macacos”. É uma pena que Jornada nas Estrelas não tenha mantido sua primeira dublagem.

Camargo: Não tenho certeza, mas me parece que no incêndio da TV Bandeirantes, onde a série foi exibida com a dublagem original pela última vez, queimaram-se as únicas cópias então existentes dessa versão. Dizem que existem algumas cópias originais numa TV do Rio Grande do Sul, mas não sei com certeza.

TB: O senhor teve algum contato com o pessoal que preparou a nova tradução e a nova dublagem? Foi convidado para participar de algum modo no processo?

Camargo: A resposta infelizmente é não. Uma vez que tendo sido o tradutor e praticamente o criador da versão original achei que seria lógico que me procurassem, mas não foi o que aconteceu. Deu no que deu...

TB: O que o senhor acha da nova dublagem, feita pela VTI do Rio de Janeiro? Existe em você a sensação de que a voz atual está "errada", depois de ter traduzido e dublado o capitão Kirk?

Camargo:
Aproveito para chamar a atenção dos trekkers para os primeiros capítulos da série clássica onde a interpretação do William Shatner era suave e até mesmo tímida em alguns aspectos. Só depois ele se firmou no papel como ator e desenvolveu mais segurança no personagem. Aliás, isso é comum nos seriados. Portanto, dublando o Kirk imprimi exatamente o tipo da personalidade dele: macia, mas firme. O Denis Carvalho, que me substituiu porque saí da AIC com a série ainda em dublagem, não se preocupou muito com isso, eu creio, e deu a interpretação que ele achou que devia. Por sinal, para mim, melhor que a do já falecido Astrogildo Filho, meio radiofônico e muito marcado no “Perdidos no Espaço”. A dublagem da VTI foi feita muitos anos depois da minha, com um pessoal que, creio eu, nunca assistiu a versão original. Portanto, em outro contexto e sem compromissos. Fizeram a versão deles. Perguntado uma vez sobre isso, o Garcia Júnior deixou bem claro que nunca pretendeu me imitar ou a qualquer um dos outros dubladores do Kirk. Muito bom, uma vez que eu nunca faria o “Mac Gyver” como ele fez.

TB: Em que tipo de mídia normalmente uma série de TV chegava ao Brasil nos anos 60 e 70? O áudio chegava pronto, já mixado, ou vinha com diálogos, músicas e efeitos sonoros separados?

Camargo: Os filmes vinham em celulóide de 16 mm. Vinha uma cópia completa, com as vozes originais, músicas e efeitos mixados; um script ou texto com os diálogos originais (em inglês) e um rolo de fita magnética também de 16mm de bitola (que não existe mais) onde vinham gravados os ruídos e a músicas do episódio. Este rolo nós chamávamos de Banda de Músicas e Efeitos (M&E Track).

TB: Nas dublagens realizadas nesse período percebe-se uma distorção no som da trilha envolvendo a música e efeitos sonoros. Por que isso acontecia?

Camargo: As distorções hoje notadas eram em função dessa banda de M&E que nem sempre vinha perfeita ou não "corria bem" na hora da mixagem com a banda de diálogos em português.

TB: A qualidade técnica das dublagens evoluiu muito nos últimos anos, mas em detrimento do cuidado na seleção das vozes e atuação dos dubladores. De uma forma geral, quais as suas impressões sobre o trabalho de dublagem nos dias de hoje?

Camargo: Infelizmente vocês têm razão. Creio que com a melhoria da tecnologia os empresários do setor resolveram baratear demais os custos e aqui incluo os valores pagos aos atores envolvidos em dublagem. Naquela época os principais atores do país - da TV ou do Teatro - também dublavam; vocês sabem disso. Porque era compensador, mas hoje os valores pagos são ridículos se comparados aos pagos pela TV Globo, por exemplo, aos seus atores. Por isso, dublam aqueles que nunca chegaram "lá"... com algumas exceções, claro! Hoje o que importa é a produção; a qualidade é secundária. Continuo em dublagem hoje, trabalhando na direção de alguns dos documentários dos canais da Discovery e sinto muito em dizer isto, mas não se pode fazer uma comparação entre a dublagem de hoje, mais industrial e rápida, com a de 30 ou 40 anos atrás, mais artística e cuidadosa. Os seriados também não são mais os mesmos, mas, sem saudosismos, as séries daquele tempo eram tão boas que jovens como vocês, que creio nem eram nascidos, são fãs e cultivam a memória de um trabalho que pessoas como eu tiveram tanto prazer em realizar.

TB: Quais são suas memórias a respeito de Jornada hoje?

Camargo: Sou criticado por não manter os sotaques que existiam no original, mas foi opção minha não criar mais uma agravante para atores que estavam praticamente começando em dublagem, como já citei, além de saber que ninguém, a não ser quem pudesse assistir ao original, notaria isso. Anos depois, fui responsável pela direção da versão de “Guerra, Sombra e Água Fresca” onde um grande ator como Marcos Plonka dublou um alemão com sotaque e fez o maior sucesso. A dublagem com sotaque é para poucos atores... Escolhi a voz do Antonio Celso, na época uma das mais belas vozes do rádio, porque quis dar um toque de grandiloqüência à abertura da série. E ficou muito bom... Acredito que a versão original tem mais acertos do que erros e a prova foi o sucesso inconteste de uma série que chegou aqui desacreditada. Se você juntar a ela meus trabalhos em séries como o já citado "National Kid", "Jeanne é um Gênio", "Agentes da UNCLE" etc, verá que além de ser uma grande série no original, Jornada nas Estrelas teve uma versão brasileira compatível.

TB: O senhor ainda é reconhecido como a "voz de Kirk”?

Camargo: Não, poucas pessoas ainda se lembram disso. Creio que mais os trekkers mesmo.

TB: Acompanhou a série depois de seu desligamento?

Camargo: Confesso que gostava tanto da série que, quando me desliguei da AIC, fiquei tão decepcionado em deixar a dublagem que vi muito pouca coisa das versões posteriores.

TB: Qual foi o personagem que mais lhe trouxe satisfação em dublar durante toda a sua carreira?

Camargo: Sem falsidade, foi realmente o capitão Kirk. E por vários motivos, alguns já citados, e pela fase de auto-afirmação profissional e pessoal que eu atravessava na época.

Entrevista realizada em 30 de janeiro de 2004.

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