Texto de
Susana Lopes de Alexandria


Picard cita Shelley para Armus


 









 

 

 
No episódio "Skin of Evil" deparamos com Armus, uma criatura feita de puro mal, que pratica atos malévolos (inclusive a morte de Tasha Yar) apenas por sadismo. Mesmo assim, o capitão Picard tenta conversar racionalmente com a criatura e até cita Shelley (ilustração) em seus argumentos, dizendo que "todos os espíritos que servem a coisas más são escravizados" ("All spirits are enslaved which serve things evil").

Este verso foi tirado do poema "Prometeu Desacorrentado" (Prometheus Unbound), escrito por Percy Bysshe Shelley (1792-1822), um dos mais representativos poetas do Romantismo inglês. "Prometeu Desacorrentado", publicado em 1820, é um drama lírico em quatro atos, fruto dos estudos de Shelley sobre os poetas gregos.

De acordo com a Bíblia, Adão e Eva foram feitos por Deus à sua imagem e semelhança. Os gregos antigos tinham sua própria explicação para o surgimento do homem. Segundo a mitologia grega, Prometeu foi o deus criador do primeiro homem (também feito de barro) e da civilização humana. Os primeiros homens vieram ao mundo nus, indefesos e sem armas. Alimentando-se apenas de frutas e carnes sangrentas, cobrindo-se apenas de folhagens, ignoravam os benefícios do fogo. Tomado de piedade por sua miséria, Prometeu resolveu dar-lhes o fogo e ensinar-lhes a arte dos metais, para que pudessem viver melhor, forjar armas e defender-se das feras.

Prometeu então roubou uma centelha de fogo de Hefestos (deus do fogo e da metalurgia), enquanto ele fundia os metais, e a deu como oferenda aos homens. A humanidade desde então conheceu, com o fogo, a felicidade de viver melhor, de comer um alimento menos selvagem, de aquecer-se e de receber a luz. Mas a alegria era tamanha que os homens julgaram-se iguais aos deuses. Zeus, o deus maior da mitologia grega, não querendo que os homens ultrapassassem seus limites, resolveu castigar Prometeu, cujo roubo fora a causa da presunção humana.

Transportou Prometeu para o mais alto cume do Cáucaso e mandou Hefestos acorrentá-lo e pregá-lo a um rochedo. Contra sua vontade, o divino ferreiro obedeceu, passando os anéis de uma inquebrável corrente aos pés e aos braços do infeliz Prometeu, fixando-os solidamente ao rochedo. Para piorar a situação, todas as manhãs uma águia vinha comer-lhe um pedaço do fígado. À noite, o fígado do pobre Prometeu se refazia, apenas para ser devorado pela águia novamente na manhã seguinte (veja ilustração abaixo). Esse suplício deveria ter durado mil anos, mas ao fim de trinta anos Zeus perdoou o culpado. Quanto aos homens, para castigar sua falta de comedimento no uso do fogo, Zeus os engoliu sob as ondas do dilúvio.

O mito de Prometeu rendeu uma peça teatral, a tragédia "Prometeu Acorrentado", escrita pelo poeta grego Ésquilo (525-456 a.C.), considerado o pai da tragédia grega. Entretanto, "Prometeu Desacorrentado", o poema citado por Picard, que Shelley escreveu mais de dois mil anos depois, embora inspirado em Ésquilo, em nada lembra uma tragédia grega. É um poema lírico sobre a perfeição moral do homem. Utilizando elementos do mito de Prometeu, Shelley defende em seu poema a teoria de que o mal não é inerente ao homem e não foi criado junto com ele, mas sim um acidente que pode ser expulso. Shelley acreditava que o mal desapareceria se a humanidade realmente assim desejasse. Com certeza, o roteirista do episódio "Skin of Evil" (literalmente, "Pele do Mal") leu o poema de Shelley, apropriou-se dessa idéia e levou-a às últimas conseqüências. Ou seja, fez com que toda uma raça conseguisse livrar-se do mal, depositando os seus pecados naquela criatura, que depois seria abandonada no planeta.