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Errando a cada ano-luz

Gostaria de iniciar a coluna dizendo que não, não sou anti-Jornada, infiel, herege ou coisa do tipo. Aliás, depois muito tempo assisti ao episódio final de Voyager de novo e fui bem menos crítico do que na primeira vez. Acho a série infinitamente superior a Enterprise em todos os aspectos e, quero acreditar, não estou sozinho nesse ponto - também espero que depois desta colocação ainda haja alguém lendo o resto do texto.

Posto isso, e justamente por minha paixão pelo seriado, quero desabafar sobre um dos aspectos que mais me incomodam, em se tratando da verossimilhança dos roteiros. A relação distância-tempo-velocidade, que foi pobremente trabalhada ao longo dos sete anos de exibição e que, na minha opinião, revela uma das mais graves falhas na continuidade da saga. 

Há quem diga que eu esteja tentando criar mais um motivo para avalanches de críticas negativas ou que me prenda a minúcias. Em parte, essas pessoas estão certas. Não que eu queira criar novas disputas entre as "facções" trekkers, mas estou preso, sim, a detalhes, pois foi justamente o cuidado com os pormenores que me atraíram ao universo de Jornada em primeiro lugar. Ora, são eles que tornam esse universo tão crível e real.

Então, vamos à questão levantada. No episódio-piloto da série, "Caretaker", fica estabelecido que a USS Voyager, uma nave recém-comissionada, é surpreendida pelo impacto de uma onda tetrion-coerente ao entrar na região do espaço conhecida por "Badlands". O fenômeno a desloca instantaneamente à incrível distância de 70.000 anos-luz. Naquele lugar, a presença da Voyager acaba gerando um conflito e, na tentativa de neutralizar uma grande ameaça, a capitã Kathryn Janeway acaba destruindo o único meio de voltar para casa, deixando a sua nave e tripulação isoladas no quadrante mais longínquo da galáxia. Janeway passa a ter como meta principal a viagem de volta, algo que, mesmo à velocidade máxima - dobra 9,975 - consumiria cerca de 75 anos.

Temos aqui os primeiros dados interessantes a considerar. Distância = 70.000 anos-luz; Velocidade = dobra 9,975; Tempo = 75 anos. Normalmente, ninguém se daria ao trabalho de verificar se o cálculo, com base na fórmula mais elementar da Física, V = D/t, confere. Eu não sou e nunca fui um bom aluno das Ciências Exatas, mas, no desenrolar do seriado, comecei a me questionar se o que eles diziam fazia sentido. Em primeiro lugar, porque os roteiristas pareciam confundir o tempo de viagem com a distância, de modo que às vezes os 70.000 viravam 75.000 anos-luz ("Death Wish"), 1.000 anos-luz equivaliam a 1 ano em velocidade máxima ("Unity", "The Gift") e coisas do gênero.

A dúvida que me levou a escrever esta coluna não diz respeito à distância ou à velocidade. Elas são grandezas "inquestionáveis". Era o tempo de viagem que me parecia errado. Tendo sido estabelecido em "The 37's", da segunda temporada, que dobra 9,975 corresponde a 4 bilhões de milhas por segundo e sabendo, pelas aulas de Física, que 1 ano-luz equivale à distância percorrida em um ano na velocidade da luz, ou 3 . 10 8 m/s, tem-se os meios de refazer as contas.

Como não sou bom com números, pedi para um amigo que estuda Matemática na Unicamp fazer todos os cálculos para mim (agradeço a Hector pela ajuda e dedico a ele a coluna da semana).

Aí vai:

D = 70.000 anos-luz
V = 4.000.000.000 milhas/s
t = ?

Primeiro passo: calcular a distância em metros

D = 70.000 anos-luz

Dm = 365 . 24 . 60 . 60 . 3 .10 8   7 . 10 4
               (luz em um ano)                                (m)

Dm = 365 . 24 . 36 . 3 . 7 . 10 14


Segundo passo: calcular a velocidade em m/s

V = 4 . 10 9 . 1,6 . 10 3
       (1 milha = 1,6km)  (1km = 1.000m)

V = 4 . 1,6 . 10 12 m/s


Terceiro passo: calcular o tempo em anos

V = 
        t

t =  6622560 . 10 14 
      V         6,4 . 10 12

t = 1034775 . 10 2 = 103477500 (s) : 60 (min)

t = 28743 (h)

t = 1197,6 (meses)

t = +/- 99 anos


Um resultado inesperado, sem dúvida. Eu desconfiava que o cálculo do tempo da jornada estava equivocado. No entanto, pensava que os roteiristas haviam hiperbolizado os números, tentando impressionar o telespectador. Achava que 75 anos era um tempo exageradamente pessimista. Depois dessa seqüência de operações, porém, notei que aparentemente ocorreu o contrário. De toda forma, as inconsistências em Voyager não pararam por aí.

Conforme citei anteriormente, no episódio "Unity", do terceiro ano, o comandante Chakotay menciona que a tripulação espera chegar em casa em 67 anos. Ele parte da premissa simplista de que a Voyager percorreu, nas três primeiras temporadas, a simbólica distância de 3.000 anos-luz. Tal suposição é falha, já que a nave não viajava à velocidade máxima. Na verdade, suas paradas e desvios de rumo constantes devem ter atrasado e muito a viagem, algo evidenciado na fala do Doutor, em "The Cloud"

"Why pretend we're going home at all? All we're going to do is investigate every cubic milimeter of this quadrant, aren't we?"
("Para que fingir que estamos indo para casa? Tudo o que faremos é investigar cada milímetro cúbico deste quadrante, não é?")

É, Doutor, foi exatamente o que aconteceu. Mas vamos em frente. 

Logo no início do quarto ano, no episódio "The Gift", a nave dá o seu primeiro grande salto através do espaço, deslocando-se quase 10.000 anos-luz em direção à Terra. A própria capitã diz, em um dos momentos mais emocionantes da série, referindo-se a Kes:

"She's thrown us safely beyond Borg space, ten years closer to home".
("Ela nos atirou em segurança além do espaço Borg, dez anos mais perto de casa".)

Fundamentando-se no pressuposto colocado por Chakotay, a USS Voyager deveria estar, nesse momento, a 57 anos de casa. Mas, alguns outros pulos e dois anos mais tarde, chegamos ao episódio duplo "Dark Frontier", em que a tripulação invade uma nave Borg para roubar um dispositivo de transdobra. Aqui, a suposição do comandante cai totalmente em descrédito, já que, ao final da história, a capitã revela em seu diário de bordo que a Voyager cortou 15 anos de viagem depois de instalar a tecnologia roubada e cruzar 20.000 anos-luz. E por aí seguem as discrepâncias, até o final da série.

A noção de espaço, que deveria ter sido considerada uma prioridade para os consultores científicos de Voyager e uma exigência dos roteiristas, foi tratada com tanta superficialidade e à base do senso comum que serviu mais como suporte à "tecnobaboseira" da série do que como aliado na construção de histórias mais coerentes e realistas - o grande diferencial de Jornada, em relação a outras franquias de ficção-científica. 

Na minha opinião, a única vez em que se teve a sensação de que a viagem importava para os tripulantes da nave foi em "The Gift". Depois disso, coincidindo com a entrada da personagem Seven of Nine e a decorrente banalização dos Borgs, esse traço desapareceu por completo. 

Hirogens apareceram e sumiram num raio de 20.000 anos-luz, Talaxianos foram encontrados a 40.000 anos-luz de seu planeta-natal. Isso, sem citar as inúmeras vezes em que Ferengis, Klingons e até humanos - todos nativos do Quadrante Alfa - davam o ar da graça no supostamente inexplorado Quadrante Delta. Isto é, desprezou-se o elemento primordial da série, o espaço, que não mais significava a fronteira final. 

Uma esculhambação, uma pena; eles erraram a cada ano-luz. Enfim, são coisas de Jornada nas Estrelas: Voyager. Ame-a ou deixe-a.

 

Daniel Sasaki é co-editor do Trek Brasilis