Diferente, mas familiar: TB segue analisando DSC

Diferente, mas familiar. Por ora é o que vem na cabeça ao pensar nas primeiras impressões causadas pela estreia de Star Trek Discovery, recém-chegada às telas de streaming e (assim se espera) ao coração dos trekkers. Familiar pois ao longo dos 84 minutos dos dois episódios de estreia podemos reconhecer elementos básicos inerentes à franquia, tais como a Primeira Diretriz (mais ao jeito da diplomacia cowboy de Kirk e ainda não tão rígida como seria em A Nova Geração), a vocação exploratória da Frota Estelar, vulcanos, Sarek, e é claro, klingons. Diferente já que existem aspectos aos quais não estamos acostumados, mas que pelo andar da carruagem irão dar o tom dessa nova Jornada que se inicia.

Começando por Michael Burnham. Pela primeira vez nossa protagonista não está sentada na cadeira de capitão e isso traz consequências óbvias e imediatas. Não estar no topo da cadeia de comando impõe para a personagem desafios maiores e certamente não foi a última vez que ela teve que tentar fazer valer seu ponto de vista, e não apenas dar uma ordem que em muitos casos seria seguida (quase) cegamente. Se isso nos causa estranhamento, cria um cenário único de possibilidades de desenvolvimento e interação.

Mas embora Burnham seja o anti-Spock em muitos sentidos ela é mais do que um simples arquétipo. Humana criada em Vulcano após uma tragédia pessoal, ela precisa agora reaprender a lidar com suas emoções e equilibrar a razão e paixão. Em um certo sentido uma criança aprendendo a lidar com o mundo de forma tardia, a criança resgatada por Sarek. A humanidade contida de Burnham quer se libertar, e isso pode ter consequências imprevisíveis. Voltaremos ao conflito razão x logica de Spock ou Data, mas não na mesma frequência. O conflito de Burnham tem outros tons e nuances únicas.

O que nos leva a Sarek e até a capitã Georgiou. Mais importante do que tecer considerações acerca de ambos (e estas serão feitas) é notar o papel de cada um na formação de Burnham. Sarek e Georgiou são mais do que pai e mãe para ela. Eles são a representação em tela da divisão de Georgiou, entre a lógica fundamental e paixão e suavidade de que precisamos para sobreviver em meio ao caos. É fácil acreditar que tenha sido escolha de Sarek que servisse sob comando da capitã, para que sua aluna pudesse enfim “completar seu treinamento”, aprendendo a lidar com a sua humanidade.  Afinal “a lógica é o início da sabedoria, não o fim”.

Os insights que vemos de Sarek aqui são poucos para podermos julgar o trabalho de James Frain e boa parte do peso do personagem vem do que já havia sido estabelecido em jornadas anteriores, logo há pouco a dizer sobre o trabalho dele como ator. Isso é útil pois deixa mais tempo (fundamental quando se tem apenas quarenta minutos) para que possamos passar mais tempo e conhecer um pouco a capitã Georgiou.

E Michelle Yeoh parece ter nascido para ocupar a cadeira de capitã. Georgiou encontra sua força na suavidade, nos gestos e no sorriso, e exala competência e liderança. Mas ao mesmo tempo é convincente nas cenas de combate, e o fato de Michelle Yeoh ter em seu currículo personagens como Wai Lin (Tomorrow Never Dies) e  Yu Shu Lien (Wo hu cang long) ajuda a dar essa credibilidade quando necessário.

No campo dos antagonistas somos reapresentados aos klingons, os vilões mais icônicos da mitologia desde a Série Clássica, mas nessa nova roupagem uma versão mais cerebral a ardilosa do que os brucutus descerebrados que conhecíamos. Porém mais importante do que deliberar sobre a nova aparência desses personagens é comentar sobre as motivações de  T’Kuvma, suas ações e consequências.

No aspecto de roteiro parece haver uma certa lentidão exacerbada no comportamento klingon aqui, acentuada pela fala quase declamada de T’Kuvma em todos os momentos, mas isto talvez tenha a intenção de acentuar a aura sacra que pretende ser dada a ação. T’Kuvma não funciona como um tradicional vilão de James Bond, mas ele se coloca como o salvador de seu povo em busca de seu Jihad particular contra a Federação, causa que deverá seu povo.

Saindo do nada, um paria de sua sociedade, T’Kuvma abraça o discurso de ódio, da intolerância a diversidade, a xenofobia e ignorância, falando ao coração de muitos de seus pares. Salvador Nogueira disse “que nunca precisamos tanto de Jornada nas Estrelas”, e é verdade. No momento em que em vários cantos do globo vemos líderes que falam em discriminação, fechamento de fronteiras, muros, intolerância, cerceamento de direitos e tantas arbitrariedades que deveríamos há muito ter deixado no passado e que cada vez mais reforçam a ideologia perigosa e mortal do “inimigo comum”, é necessário que pensemos nas consequências dessas vozes para o planeta, e que estejamos prontos a reconhecê-las e combate-las, sob o risco de voltarmos a idade das trevas. A ignorância, essa sim, é o verdadeiro inimigo.

Alguns podem ver Jornada na Estrelas como uma série de naves espaciais visitando um planeta por semana e contando piadas sobre isso, e as vezes é, mas se assim fosse somente não teríamos chegado aos cinquenta anos de franquia.  Jornada é e deve ser muito mais. Crítica e socialmente relevante, e conectada com seu tempo, e que precisa nos fazer sobre o mundo em que vivemos e onde queremos viver no futuro. Se não for assim, que não seja nada.

No campo valores de produção, Discovery demonstra ter sido realizada com muito esmero. Cuidado e carinho com detalhes são vistos nos comunicadores e phasers por exemplo. Mas embora o aspecto visual seja sofisticado e moderno, a escolha da palheta de cores (por exemplo, os tons de azul da Frota e o tom dourado e pastel dos interiores klingons, que dominam quase toda a projeção) e de uma iluminação muito escura faz com que a fotografia tenha uma tendência a ser ligeiramente monótona e as vezes cansativa. Como elemento de linguagem esse tom esteve de acordo com a proposta do roteiro, e totalmente aceitável, mas seria muito bem-vinda uma iluminação um pouco mais clara no futuro.

No geral 40, 42 minutos para cada episódio pareceram pouco tempo para contar tudo que era necessário, o que certamente forçou algumas soluções pouco elegantes, como por exemplo, no momento em que vemos Sarek fazer um elo mental com a Michael ainda criança aparentemente com intuito de salvá-la, apenas para logo em seguida servir como justificativa para o ele mental “transwarp” entre ele e Michael que está a anos-luz de distância. Desta vez passa, mas é salutar que soluções como essa não sejam usadas frequentemente.

Por outro lado, outras escolhas são interessantes. Se a projeção do almirante Anderson a bordo da Shenzhou o coloca na mesma altura de Georgiou o que passa um sentimento de igualdade, o mesmo não acontece quando o Conselho klingon é projetado a bordo da nave klingon. Este aparece num plano muito mais elevado em relação a T’Kuvma parecendo com isso querer demonstrar a sua posição de inferioridade frente ao conselho. O ângulo da câmera muda um pouco, mas sempre mantendo o klingon eu seu lugar. Apenas um detalhe, mas bem-vindo.

Enfim, chegamos ao fim dos dois episódios com muitas perguntas e expectativas, e isso é bom. É bom que Jornada nos traga de volta a curiosidade e a vontade de descobrir o que “há lá na frente”, que nos mantenha com atenção ao presente, mas de olho no futuro.

O que sabemos por hora é que agora teremos que acompanhar uma nova jornada, de Michael Burnham em busca de sua redenção e de Discovery, buscando se firmar nessa nova fase da franquia. Essa nova saga que se apresenta não parece ser de escolhas fáceis, mas que em pouco tempo já provou que merece ser abraçada.