Novas leituras da Série Clássica a partir de Discovery

A segunda temporada de Star Trek: Discovery acabou de acabar e é praticamente inevitável querer assistir aos episódios da Série Clássica, mesmo que pela milésima vez. Por isso, quero compartilhar com vocês alguns detalhes que percebi ao longo desta segunda temporada que dialogam com a série de Kirk, Spock e McCoy.

Não estou me referindo às grandes expansões do cânone ou de personagens, isto é esperado de toda prequel e ficou bem óbvio em tela, mas àquelas informações apresentadas em Discovery que vão tornar alguns detalhes da série original ainda mais significativos durante a sua próxima maratona.

O início da amizade entre Kirk e Spock:

Sempre me perguntei por que Spock, introvertido e todo razão, quis ser amigo de alguém tão expressivo e apaixonado como Kirk. Bem, parece que me responderam. Em “Such Sweet Sorrow: Part 2”, Michael aconselha seu irmão a não se isolar:

É o último conselho que poderei lhe dar. Há uma galáxia lá fora cheia de pessoas que quererão se conectar a você. Você tem de permitir. Ache quem pareça mais distante de você e tente se ligar a ele.

Michael foi quem lhe mostrou que era possível seguir o caminho da razão e dos sentimentos e o conselho dela o mantém aberto ao diferente, evitando que ele se feche em sua lógica novamente. Neste sentido, conectar-se a uma personalidade contrária a sua é fundamental para que ele tenha uma contraparte como espelho que o mantenha em equilíbrio.

Anos mais tarde, Spock conhece James T. Kirk, alguém que certamente podemos classificar como uma personalidade “distante”, quase oposta, de um vulcano. E o resto é lenda.

Spock testemunha em favor de Kirk (“Court Martial”):

No episódio “Court Martial”, os registros do computador da Enterprise apontam Kirk como o responsável pela morte de um oficial. Durante o julgamento, Spock testemunha em sua defesa, demonstrando uma confiança inabalável em seu capitão:

Tenente, eu sou meio vulcano. Vulcanos não especulam. Falo por pura lógica. Se eu soltar um martelo em um planeta de gravidade positiva, eu não preciso vê-lo cair para saber que caiu.

A resposta que Spock dá à Tenente Areel Shaw é mais do que esperada. Contudo, algumas cenas após o julgamento, vemos Spock jogando xadrez. McCoy o interrompe e o questiona como é possível que ele esteja jogando em uma hora daquelas. O jogo é o meio que Spock encontra para comprovar a falha nos sistemas da nave e, posteriormente, inocentar Kirk.

O fato de Spock não aceitar o relatório do computador e pensar em testá-lo pode ser interpretado, pós Discovery, não apenas como um ato de lealdade que ele tem para com Kirk, mas porque ele próprio já foi vítima de uma falsa acusação de assassinato também envolvendo a adulteração de dados. Spock oferece a Kirk o mesmo que recebeu de sua família e amigos na época: a plena certeza de sua inocência.

Proteção materna: Amanda esconde Spock em uma cripta em Vulcano.

O motim de Spock (“The Menagerie”):

Até a metade da segunda temporada de Discovery, nós acompanhamos o desenrolar da trama em relação ao desaparecimento de Spock e de sua acusação pela morte de três pessoas. O capitão Pike mantém-se confiante quanto ao caráter de seu oficial de ciências e não mede esforços para descobrir o paradeiro de Spock e resgatá-lo com vida, arriscando sua carreira no meio do caminho.

O motivo pelo qual Spock se amotina em “The Menagerie” é a releitura da Série Clássica que mais nos salta aos olhos. Embora já soubéssemos da série original que o primeiro oficial da Enterprise queria levar Pike, já preso em sua cadeira, para Talos IV como um gesto de gratidão pelo tempo em que serviu sob suas ordens, a segunda temporada de Discovery nos mostra os detalhes da construção dessa relação de respeito e lealdade: Spock coloca tudo a perder em prol do bem-estar de alguém que um dia se sacrificou da mesma forma por ele.

“Now… you see.”

A recusa de Pike de ser levado a Talos IV (“The Menagerie”):

Este detalhe quem captou foi o Fernando Rodrigues, o nosso Odo, durante um Odocast, e também suscita uma nova leitura a uma cena de “The Menagerie”.

Além de a segunda temporada de Discovery formar o background, até então inexistente, de alguns personagens canônicos e adicionar ainda mais drama em relação à ida de Spock a Talos IV na Série Clássica, o episódio “Through The Valley of Shadows” nos mostra o sacrifício do capitão Pike em prol da existência do universo.

Mesmo após o vislumbre de seu futuro aterrador, Pike sela seu destino ao escolher ficar com o cristal do tempo. Quando Spock quer levar o antigo capitão da Enterprise para Talos IV, Pike recusa imediatamente, como se não quisesse ir contra o fim que havia abraçado no templo de Boreth, talvez por medo de alguma consequência.

O Sorriso de Spock (“The Menagerie”):

Ainda em The Menagerie”, temos o flashback que nos mostra o grupo avançado da Enterprise descendo pela primeira vez em Talos IV. Ao se deparar com as flores azuis que emitem som, Spock sorri.

Ao longo da primeira e segunda temporada de Discovery, nos é mostrado que Amanda Grayson lia Alice no País das Maravilhas para seus filhos (informação previamente trazida no episódio da Série Animada “Yesteryear”). É através do livro que Spock entende a si mesmo e aprende a lidar com a L’tak Terai, a forma vulcana da dislexia.

Ninguém queria ajudar um meio-vulcano com dificuldade de aprendizado que ele tinha herdado da mãe dele. E, para salvar o nosso filho, comecei a ler uma história para ele sobre como sobreviver quando tudo está ao contrário.

Ao final de “If Memories Serves”, a Georgiou do Espelho diz a Leland que ela destruiu todos os talosianos de seu universo junto com as suas “plantas idiotas que cantam”. E em qual história infantil também há plantas cantoras? Acertou se você respondeu Alice no País das Maravilhas.

Talvez, para Spock, ver as flores que pareciam ter saído das páginas do livro que sua mãe lia para ele em épocas difíceis tenha sido tão impactante quanto perceber que Jim Kirk estava vivo no final de “Amok Time”. Discovery nos oferece uma possibilidade de leitura para o sorriso de Spock bem mais interessante e cheia de cores do que a realidade de nosso mundo: não existia nada de concreto sobre o personagem quando “The Cage” foi gravado e o sorriso do meio vulcano se tornou um erro de continuidade.

“Já li isso em algum lugar…”