Picard compara evacuação romulana a Dunquerque

Em “Remembrance”, primeiro episódio de Star Trek: Picard, o famoso almirante reformado Jean-Luc Picard concede uma rara entrevista à FNN (Federation News Network), em memória ao aniversário da detonação da supernova romulana. A condição imposta para sua participação foi não perguntarem por que ele havia deixado a Frota Estelar pouco depois do ataque dos sintéticos aos estaleiros de Utopia Planitia, em Marte, numa tragédia que fez a Federação e a Frota Estelar voltarem atrás em sua promessa de ajudar os romulanos na evacuação de seus mundos habitados. Picard, visivelmente incomodado pela violação da confiança, é levado a abordar o tema e compara o esforço hercúleo de salvar civilização romulana com Dunquerque. Mas o que foi o episódio histórico que ficou conhecido como o Milagre de Dunquerque?

Para buscar a resposta, devemos mergulhar na história das guerras recentes e voltar para o ano de 1940, nos primeiros meses da Segunda Guerra Mundial. A Força Expedicionária Britânica havia saído do Reino Unido e estava em solo francês, lutando ao lado de seu aliado continental contra a Alemanha nazista. Até então, franceses e britânicos acreditavam que a “guerra” seria concluída antes do fim naquele ano, já que após a Grande Guerra, a França havia construído a “magnífica, imponente e inexpugnável” Linha Maginot, ao longo dos 400 km de fronteira com a Alemanha, e os combates eram até então muito poucos, no que até ficou conhecido como “Guerra de Mentira”. Mas, no dia 11 de maio de 1940, o inimaginável aconteceu: a Alemanha lança a blitzkrieg contra os Países Baixos, Luxemburgo e Bélgica, e os três países são derrotados com uma rapidez assustadora, caindo em mãos alemãs. Através das Ardenas (região da Bélgica), os nazistas contornam a Linha Maginot (transformando-a no complexo de defesa mais inútil da história) e invadem a França.

Os exércitos franceses e britânicos tentam desesperadamente conter o avanço inimigo, marchando para a fronteira belga, mas o estrago já estava feito e era tarde demais. Os tanques Panzer avançavam quilômetros adentro do solo francês, conquistando terreno rapidamente, facilitando o trabalho da infantaria alemã. Pelos céus, a Luftwaffe dava apoio e conquistava o espaço aéreo francês com igual rapidez, fazendo franceses, britânicos e belgas recuarem cada vez mais, até serem encurralados na comuna francesa de Dunquerque, localizada na região de Calais, onde se localiza o porto de mesmo nome e o terceiro maior porto da França (atrás dos de Le Havre e Marselha). Lutando de costas para o Canal da Mancha numa frente curvada de 250 km, os soldados britânicos estavam numa enrascada. Naquele momento, ficou claro que uma retirada total de modo seguro de volta para a Inglaterra era mais do que vital para a sobrevivência da Grã-Bretanha.

Cidade de Dunquerque, no norte da França. (Crédito: Wikipedia Commons)

Em 22 de maio, foram iniciados os preparativos para a evacuação, com o codinome de Operação Dínamo, sendo executada a partir de Dover, o ponto geograficamente mais próximo entre Inglaterra e França. Essa operação foi comandada pelo vice-almirante inglês Bertram Ramsay. A princípio, a Marinha Real podia garantir a evacuação de até 45 mil soldados da Força Expediciónaria Britânica em dois dias, mas os planos foram mudados para resgatar 120 mil homens em cinco dias. Na manhã de 26 de maio, o ministro da Guerra britânico, Anthony Eden, dá a ordem para um recuo total em direção à costa francesa, apesar de o Comandante-em-Chefe da Força Expediciónaria Britânica, general lorde John Vereker, 6º Visconde de Gort, deixar bem claro que duvidava do sucesso da operação. Porém a sorte estava ao lado dos aliados, e o primeiro grande erro da então invencível maquina de guerra alemã foi cometido, o que divide muitos historiadores até hoje. Uns afirmam que Herman Göring, o comandante da Luftwaffe, garantiu à Adolf Hitler que faria os britânicos se renderem com seus bombadeios constantes, o que de fato não aconteceu. Outros afirmam que Hitler queria tentar mais uma vez um acordo de paz com os ingleses e por isso teria ordenado um cessar-fogo, pois, em 23 de maio, com os Panzer alemães a apenas 20 km de Dunquerque, o general alemão Gerd Von Rundsredt, emitira a seguinte ordem: “Deter-se na linha do Canal A e instalar-se.”

Isso deu tempo para que o primeiro-ministro inglês Winston Churchill emitisse uma ordem requisitando para a operação todas as embarcações das Ilhas Britânicas, incluindo as civis e privadas, por menor que fossem, formando assim o que ficou conhecida na história como a Frota dos Barquinhos (os Little Ships of Dunkirk), pois seriam usadas na evacuação entre 700 e 850 embarcações de pequeno porte. Entre os dias 26 de maio e 4 de junho de 1940, com a coordenação da frota da Marinha Real, que operava no Canal da Mancha, e com o apoio da Força Aérea Real, que combatia a Luftwaffe nos céus franceses, 340 mil homens foram resgatados das praias de Dunquerque. Para ter a mais mínima ideia de quão importante foi essa operação, no dia 31 de maio as forças aliadas estavam comprimidas (sim, literalmente comprimidas) num espaço de 5 km entre De Panne, em Bray-Dunes, até Dunquerque. Só nesse dia, quase 80 mil soldados foram retirados e, em 1º de junho, outros 65 mil homens. Em 4 de junho, a Operação Dínamo foi oficialmente encerrada e o Milagre de Dunquerque foi grandemente celebrado.

Picard, conhecido amante da história, muito apropriadamente comparou o esforço de construção de 10 mil naves de resgate em Utopia Plantia para retirar 900 milhões de vidas (não apenas “vidas romulanas”, mas sim vidas) com esta que, sem dúvida, foi a maior retirada estratégica da história militar. Sua comparação quis mostrar para todos que, para salvar vidas da completa aniquilação, não se mede esforços, não se faz julgamento de valores, não se analisa se eram os mais antigos inimigos da Federação, apenas se faz tudo o que estiver ao alcance e além. Lembrando aqui uma cena do filme A Lista de Schindler, em que o protagonista recebe um anel de presente dos mais de mil judeus que ele protegeu, contendo a inscrição em hebraico (retirada do Talmud): “Aquele que salva uma vida, salva o mundo inteiro.” Essa frase, por si só, demonstra quão determinado o almirante Jean-Luc Picard estava em fazer a coisa certa, e sua revolta com a Frota Estelar quando ela decidiu abandonar os romulanos à própria sorte, que o fez tomar a drástica decisão de pedir baixa do serviço, depois de mais de cinco décadas de dedicação a essa instituição.

Agora é esperar para ver o que trarão os próximos capítulos na vida de Picard, depois que o velho almirante encontrou nova motivação para viver, em vez de esperar a chegada da morte em sua bucólica, tranquila e secular propriedade familiar: as vinícolas do Château Picard.