Após ser morto no cinema, William Shatner tentou convencer o estúdio a ressuscitar seu personagem, o que acabou levando a uma série de livros em uma realidade alternativa.
Após seis filmes e uma despedida honrosa do comando da Enterprise em Jornada nas Estrelas VI: A Terra Desconhecida, William Shatner de início não titubeou quando o convidaram para participar de Generations e ajudar na passagem do bastão para o elenco de A Nova Geração. “De fato, de início, quando Rick [Berman] me ligou e falou sobre liquidar o capitão, isso não me incomodou”, relembrou o ator em seu livro Jornada nas Estrelas: Memórias dos Filmes. “De fato, fiquei muito excitado, pensando: ‘Bom, se vai mesmo ser a última aventura de Kirk, há maneira melhor de encerrar esse capítulo? É dramático. Será muito divertido de fazer e, se for bem escrito e importante para a trama, então será bom para o filme também’.”
Conforme as filmagens de cena fatídica se aproximavam, contudo, Bill saiu da negação e passou a assimilar o que significava dar adeus ao personagem que o consagrou, numa morte que, os roteiristas asseguravam, seria para valer, sem os abracadabras que envolveram a de Spock em Jornada nas Estrelas II: A Ira de Khan. A melancolia passou a tomar conta de Shatner. E, quando tudo estava encerrado, o que era tristeza virou inconformismo. “Matar Kirk? O que há com eles, perderam a cabeça? Como eles poderiam matar uma franquia? Por que eu concordei com isso?”, ecoou o ator anos depois, em sua autobiografia Up Till Now (2008).
Ainda enquanto filmava sua despedida, o ator começou a usar seus dotes de escritor para tentar “spockear” a morte de Kirk. Produziu um argumento de 40 páginas intitulado “The Return” e apresentou à Paramount a ideia de trazer o velho capitão de volta. “Como expliquei, havia uma razão muito importante para trazer Kirk de volta. Oitenta milhões de dólares.” Nem Rick Berman, nem o estúdio se sensibilizaram.
A última cartada de Shatner, então, foi passar o chapéu nas editoras, e a Simon and Schuster, dona do selo Pocket Books, que então publicava os romances de Star Trek, se animou com a ideia de promover a ressurreição de Kirk em forma de livro.
Não seria o primeiro romance escrito por Bill, tendo sido o criador da série e autor dos romances do universo TekWar, mas ele nunca trabalhava sozinho nesses projetos. Coube a Kevin Ryan, editor da Pocket, encontrar parceiros ideais de escrita para Shatner no projeto. Os escolhidos foram o casal Judith e Garfield Reeves-Stevens, que haviam acabado de escrever o romance trekker multigeracional Federation, publicado em 1994.
“Federation estava no manuscrito e eu recebi uma ligação do Kevin Ryan que disse que estavam falando com Shatner e queriam saber se estávamos interessados em trabalhar com ele”, relembrou Garfield Reeves-Stevens, em entrevista ao site TrekMovie. “Fomos ao escritório de Bill e ele tinha essa ideia, uma ideia romântica, e nos contou a história e fez as vozes, e era ótimo. Nossa dúvida no final, porque era uma boa história do capitão Kirk, foi: ‘E quanto a Spock e McCoy? O que eles fazem?’ E ele disse: ‘A gente resolve isso’.”
A ÚLTIMA AVENTURA DA ENTERPRISE-A
A primeira história que eles produziriam, na verdade, não seria o retorno triunfal de Kirk, mas sim uma trama que se passaria entre A Terra Desconhecida e Generations. Intitulada The Ashes of Eden, ela basicamente retrata a dificuldade de Kirk em lidar com a própria idade. Na trama, o capitão decide encerrar a carreira depois que um desafeto se torna o Comandante da Frota Estelar e conhece a jovem e sensual Teilani, uma híbrida vulcana e klingon. Apaixonado, ele atende a suas súplicas e decide ajudá-la a proteger seu planeta, Chal. Com isso, leva a Enterprise-A (que fora cedida pela Federação a Chal como um gesto de boa-vontade) em sua última missão. Um detalhe crucial: aparentemente o planeta de Teilani tem algo que impede as pessoas de envelhecer, algo que naturalmente seduz o capitão Kirk a essa altura da vida (a trama não só antecipa lances do filme Insurreição, e a busca da fonte da juventude, como diz muito sobre o estado de espírito de Bill Shatner na época).
O livro foi lançado em 1995 e virou também uma graphic novel, publicada pela DC Comics, dando o pontapé inicial ao que ficaria conhecido como o Shatnerverso – uma linha do tempo não canônica moldada pelo intérprete do capitão Kirk para trazer seu personagem de volta à vida pós-Generations. Nesse espírito, é sintomático que o romance The Ashes of Eden inclua um prólogo e um epílogo no século 24, em que Spock vai a Veridian III para supervisionar o resgate dos restos mortais de Kirk para o funeral e descobre que o corpo foi abduzido por uma força de origem desconhecida. Talvez tenha sido a cartada final de Shatner para criar comoção ao redor de uma possível volta de Kirk em tela, a fim de convencer o estúdio. Mas, como essa nave estelar já havia mesmo zarpado, em 1996, ele e o casal Reeves-Stevens lançam The Return: aparentemente os romulanos e os borgs teriam feito uma aliança para ressuscitar Kirk e colocá-lo à caça de Picard. No fim das contas, os dois vão parar no planeta natal dos borgs (que, pasme, seria o planeta de V’ger), e Kirk se sacrifica mais uma vez para salvar Picard e a galáxia. Só que não.
A história se fecha em uma trilogia com Avenger, em 1997, em que descobrimos que mais uma vez Kirk sobreviveu, tendo sido transportado de última hora do decadente mundo natal borg para uma espécie de esgoto dessas criaturas cibernéticas, onde viveu com uma comunidade ex-borgs (dentre eles Hugh, de “I Borg”) até retornar a Chal, para reencontrar uma Teilani moribunda, salvá-la e iniciar a investigação de uma imensa conspiração de sabotagem ambiental que pode fazer ruir a Federação. No processo, ele volta a trombar com Spock e a tripulação da (agora já incorporada à saga) Enterprise-E, comandada por Jean-Luc Picard.
UMA CHUVA DE LIVROS
A trilogia original foi um grande sucesso de público. Vendeu feito água no deserto de Veridian III. The Return (publicado aqui no Brasil como O Retorno do Capitão Kirk, pela editora 67, selo Sci-Fi Books, em 1998) chegou a figurar na quarta posição na lista de best-sellers do jornal americano The New York Times, e claro que a Pocket Books gostaria de ver as aventuras de Jim Kirk prosseguindo nas páginas de seus livros.
Shatner então voltou a se reunir com a dupla Reeves-Stevens e, juntos, eles escreveram uma nova trilogia: Spectre, Dark Victory e Preserver. Os livros, publicados em 1998, 1999 e 2000, colocam frente a frente dois personagens que não chegaram a se encontrar no cânone: James Kirk e sua versão do universo Espelho. A história também incorpora algo que o ator-escritor queria ver explorado com seu personagem, ao mostrá-lo casado (com Teilani) e com um filho (híbrido humano, klingon e romulano).
Após a trilogia do Espelho, veio, adivinhe só, mais uma trilogia: Captain’s Peril, Captain’s Blood e Captain’s Glory. Lançada entre 2002 e 2006, ela se concentra em um novo inimigo galáctico: a Totalidade, uma entidade antiga que vem de fora da Via Láctea. O epílogo da última delas termina com Kirk, Spock e McCoy juntos pelo espaço, 19 anos após a trama da trilogia. A essa altura, Kirk teria quase 90 anos, e McCoy, sem o benefício de uma passagem pelo Nexus, estaria com 170. Forçada de barra total.
Nem assim, Shatner parou. Após dar um final romântico e aberto, ainda que pouco crível, ao grande trio da Série Clássica, ele e o casal Reeves-Stevens decidiram fazer um grande salto para trás no tempo e explorar o primeiro encontro de Kirk e Spock na Academia da Frota Estelar. Academy – Collision Course foi lançado em outubro de 2007, mas àquela altura J.J. Abrams já estava trabalhando firme em seu filme de cinema, que exploraria esses mesmos eventos, mas em uma linha do tempo alternativa à dos seriados de TV (o chamado universo Kelvin).
Os romancistas haviam pensado numa duologia, e a continuação, Academy – Trial Run, estava na fila para ser publicada em 2008, mas acabou suspensa, para não criar confusão/competição com o reboot cinematográfico prestes a ser lançado. Com isso, as aventuras do Shanerverso chegaram ao fim. Embora não sejam canônicas, e tenham seus altos e baixos, muitos fãs saudosos do capitão preferem acreditar que, como narrado nesses livros, Kirk na verdade não deu seu último suspiro em Veridian III.
Texto publicado originalmente no volume 29 da Coleção Trek Brasilis, de maio de 2022. Se você se interessa por conteúdos como este, conheça e assine a Coleção Trek Brasilis em tbshop.org!
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