Um episódio que merece apenas o esquecimento
Sinopse
A Enterprise está à procura de uma nave estelar desaparecida, a USS Exeter. Encontrada em órbita de Ômega IV, ela é visitada por um grupo liderado por Kirk, que descobre que a tripulação toda foi desintegrada, transformada em sais cristalizados. Kirk, Spock, McCoy e Calloway investigam os diários da nave e descobrem que os tripulantes foram mortos por um vírus, e o único sobrevivente é o capitão Ronald Tracey, que ficou na superfície do planeta. O grupo então se teletransporta para encontrá-lo.
Lá eles veem Tracey vivendo em meio à sociedade dos kohms, humanoides que parecem estar em harmonia, salvo pelos confrontos constantes com os selvagens yangs. Galloway acaba ferido por um deles, e Spock conclui que os yangs estão preparando um ataque contra os kohms. Ele também constata que Tracey vem usando feisers para ajudar os kohms e interferir naquela civilização.
Kirk pretende informar a Enterprise, mas Tracey o impede e acaba matando Galloway. Kirk e seus comandados são detidos, enquanto o capitão renegado tenta explicar seu propósito: há algo no planeta que os impede de morrer do vírus e que confere vida e saúde aos nativos, que não têm doenças e atingem os mil anos de idade. Tracey quer usar os recursos da Enterprise para descobrir o segredo dos kohms e levá-lo à Federação.
Indisposto a colaborar, Kirk é colocado numa cela com um casal de yangs selvagens. Lá, ele descobre que esses humanoides têm valores como liberdade e autodeterminação, lembrando a cultura dos antigos Estados Unidos da América, na Terra. Os kohms, por sua vez, lembram uma cultura evoluída da antiga China comunista, e parece que nesse mundo de desenvolvimento paralelo houve uma guerra devastadora que colocou ambos os lados na situação em que estão hoje, com os kohms subjugando os yangs.
O casal preso com Kirk o ataca e consegue fugir. Em seguida, é a vez de o capitão, com Spock, conseguir escapar. Ao se reunirem com McCoy, o médico informa o resultado de seus estudos: o vírus foi fruto de uma guerra biológica no passado daquele planeta, para a qual surgiram respostas imunológicas naturais. Qualquer pessoa que passa algumas horas no planeta adquire imunidade. Mas isso nada tem a ver com a longevidade dos nativos, fruto de sua evolução natural.
Kirk pretende voltar à Enterprise, mas Tracey chega de surpresa e impede. Recém-atacado pelos yangs, ele agora quer que Kirk ordene à Enterprise que traga mais feisers para a luta contra os kohms. Quando isso não dá certo, os dois entram em combate corpo a corpo, e todos acabam capturados pelos yangs.
Tracey então tenta convencer os yangs de que Kirk anda com o diabo — Spock, que se parece muito com o demônio das lendas yangs. A decisão sobre quem diz a verdade é feita por combate, que Kirk vence, enquanto Spock manipula telepaticamente uma yang para ativar um comunicador apreendido. Isso leva a uma chegada de um grupo de segurança da Enterprise, colocando tudo sob controle. Kirk então reconhece as “palavras sagradas” dos yangs, um forte paralelo com o preâmbulo da Constituição dos Estados Unidos, e apresenta aos nativos seu significado, perdido após uma guerra apocalíptica travada naquele planeta.
Comentários
“De boas intenções o inferno está cheio” é uma expressão que se refere a ideias que até parecem ser boas, mas que podem acabar ter mais consequências negativas do que positivas. Tal expressão pode ser aplicada sem reservas a “The Omega Glory”, segmento que flerta com várias ideias interessantes, mas que no final capota em um trágico acidente com ferimentos graves que mesmo após cicatrizados ainda doem.
Começando pelas boas ideias, o encontro da Enterprise com outra nave da Frota estelar (geralmente) em perigo é sempre uma oportunidade interessante de mostrar o quanto a missão de patrulha da Frota Estelar oferece perigos e nem sempre as coisas dão certo. Já vimos algo parecido em Doomsday mMchine e agora a ideia se repete, mas dessa vez com um mistério um pouco diferente. Um mistério que declarar a perda de uma tripulação inteira de forma trágica.
Nesse ponto é sempre curioso lembrar uma certa conexão da explicação do que teria acontecido com o pessoal da Exeter com a maneira como o gênero sci fi se conectava com o gênero terror pelos anos 50 e 60. Mas é importante comentar que o tema de invasão alienígena em grande parte da produção americana nessa época é diretamente ligado ao medo americano da disseminação comunista, algo muito forte nesse período que chamamos de “guerra fria”.
O roteiro rapidamente consegue uma forma de infectar o capitão e os membros do grupo avançado, manda-los ao planeta e impedir que eles voltem a nave e que qualquer ajuda humana seja enviada, de uma forma simples e sem tomar tempo que normalmente é valioso a um segmento de 50 minutos.
Outro tópico interessante aqui é a pretensa infalibilidade (ou não) dos oficiais da Frota Estelar. Aqui podemos ver os tons de cinza da Serie Clássica ao mostrar um capitão que se corrompe ao perceber (ou pelo menos imaginar) que tinha em mãos algo extremante valioso, tema que seria revisitado no longa “Star Trek: Insurrection” (1998). Tracey (Morgan Woodward), da mesma forma que o Comodoro Decker (William Windom) em “The Doomsday Machine“ perde toda tripulação, mas diferente dele o capitão da Exeter não se monstra nem um pouco consternado com essa perda. Pelo contrário, parece perfeitamente adaptado a vida no planeta Omega.
Morgan Woodward tem uma atuação ótima aqui, encarnando uma figura de um capitão tão competente quanto Kirk, mas que primeiro cede a ganancia, e depois enlouquece, se mostrando um antagonista realmente temível. Woodward trabalha tão bem que consegue fazer algo que é totalmente contra indicado em TV ou cinema. Ele conta, ao invés de mostrar, o ataque que sofreu dos Yangs.
É obvio que isso acontece pelas limitações de orçamento que impediriam que tal ação fosse levada a termo em tela, mas esse tipo de cena tem enormes chances de fracasso, o que não acontece graças a competência do ator convidado ao longo de todo segmento que entre outras coisas tem uma excelente impostação de voz, algo que colabora demais com seu ótimo desempenho.
Segmento que tem boas doses de violência ainda que sem sempre mostrada em tela como a comentada no paragrafo anterior, ou talvez a mais angustiante, o assassinato a sangue frio de um tripulante da Frota pelas mãos de um oficial que não hesitou em atirar para matar, algo perturbador para o cenário de Star trek.
O roteiro também permite retirar McCoy da história na maior parte do tempo ao dar e ele a possibilidade de trabalhar em seu ambiente, emulando elementos de “Miri” e não o impede de executar suas participações pontuais quando necessário embora não lhe grandes oportunidades aqui, mas permite que uma solução orgânica para o mistério da longevidade dos nativos seja encontrada com razoável verossimilhança.
Vincent McEveety faz um bom trabalho na direção desse segmento. Experiente na Série Clássica, o diretor consegue um trabalho eficiente de externa nas cenas do planeta e um bom resultado ao mostrar os interiores da Exeter vazios (mostrar e não contar). Além disso McEveety amplifica ainda mais a presença de Tracey como adversário ao privilegiar ângulos Contra-Plongée ao enquadrar Woodward, que já é mais alto que Shatner mas que tem essa dominância amplificada pela câmera e por um trabalho de iluminação, mostrando o quanto ele é perigoso.
Até aqui tudo vai relativamente bem e existem elementos suficientes para a construção de uma boa história, mas o vírus que destruiria qualquer chance desse segmento não se transformar em mais completo desastre já havia sido plantado quando as palavras Kohms e Yangs foram pronunciadas pela primeira vez.
Se existe um axioma absurdo em Star Trek é absurda teoria de desenvolvimento paralelo, criada para justificar por que tantos encontros com alienígenas “humanizados” uma vez que orçamento e tecnologia disponível tornaria caro ou mesmo inalcançáveis experiências mais complexas.
Mas para tudo devem existir limites, e aqui todos os limites possíveis foram exterminados sem piedade ao elaborar uma história que criar um paralelo absurdo com a rivalidade EUA x Comunismo, que aqui decidiu trocas os Russos, inimigas mais óbvios e declarados durante a guerra fria por asiáticos, em um momento que os EUA estavam fortemente envolvidos no conflito de Vietnã.
Desse momento em diante o roteiro simplesmente abandona qualquer intenção de dar seguimento e sentido as intenções plantadas nos seus primeiros 3/4 de exibição, deixando de lado qualquer tentativa de fazer valer o investimento de atenção cobrado ao espectador que acompanha até imaginando que saibamos minimamente do que o segmento trata e o que pretende alcançar e sem o menor constrangimento abandona os elementos vistos até para investir em uma das conclusões mais desconectadas com qualquer verossimilhança com seus próprios temas.
A partir dai o que se vê é um festival de casuísmo e oportunismo em episódio panfletário que não pretende nada mais que uma patriotada massageando o ego americano. Nada justifica um episódio em que os “alienígenas” tem sua versão da Bíblia e Constituição americana e juram lealdade a bandeira americana (recitando as mesmas palavras) sem o menor constrangimento.
Mais do que isso, com os “yangs” sendo representados como nobres guerreiros cujo causa é justa enquanto os Kohms como conquistadores impiedosos de um regime totalitário que nada mais querem do que o domínio territorial pela força.
Some-se a isso uma das atuações mais constrangedoras de Shatner em seu discurso final no salão que consegue entregar aqui todos as deficiências que o ator eventualmente carrega em suas interpretações. Não se trata de condena-lo de forma absoluta, mas eventualmente Shatner demonstra que tem algumas dificuldades e aqui ele consegue reunir todas de uma vez contribuindo de forma contundente para que esse episodio acabe de forma tão insidiosa.
Perto disso os pequenos defeitos que o segmento carrega chegam a ser secundários, mas eles existem. Primeiro a onisciência de Tracey e seus capangas que sabem exatamente o segundo em que precisam aparecer ou sair do sono profundo para impedir alguma ação dos protagonistas, onisciência que desaparece totalmente quando Kirk é deixado na cela com um yang e fica desacordado por oito horas sem que ninguém apareça, tempo suficiente para que Cloud Willians pudesse escapar e avisar sua tribo do ataque que sofreriam. Como bônus, a chave que abre a cela de Spock é deixada a vista e acessível.
Uma dessas aparições repentinas é especialmente constrangedora. Nela, Kirk tenta subjugar um guarda estando deitado no chão com as mãos amarradas para trás e acreditando ser capaz de incapacitar o vigia que transitava livre com uma espada em punho. Para sorte do capitão da Enterprise Tracey aparece, caso contrário é muito provável que as consequências dessa tentativa fossem serias.
Outra ação igualmente constrangedora é a perseguição a Kirk por Tracey na vila Khom, com direito a saltos acrobáticos incrivelmente mal coreografados, e aqui infelizmente não dá pra defender o diretor, que até vinha bem.
A maior tristeza em “The Omega Glory” é perceber que esse tinha elementos suficientes para criar ao menos um episodio interessante, ou que poderia chegar mesmo a ser um episodio relevante para a Serie Clássica, mas que despenca de um abismo e acaba em desastre deixando uma macula que Jornada nas Estrelas não merecia.
Avaliação
Citações
“A star captain’s most solemn oath is that he will give his life, even his entire crew, rather than violate the Prime Directive.”
(O juramento mais solene de um capitão estelar é que ele dará a vida, até mesmo toda a sua tripulação, em vez de violar a Primeira Diretriz.”)
Kirk
“We’ve got to stay alive. Let the Yangs kill us and destroy what we have to offer and we’ll have committed a crime against all humanity. I’d say that’s slightly more important than the Prime Directive, wouldn’t you, Jim?”
(Temos que permanecer vivos. Deixe os Yangs nos matarem e destruírem o que temos a oferecer e teremos cometido um crime contra toda a humanidade. Eu diria que isso é um pouco mais importante do que a Primeira Diretriz, não é? Jim?)
Tracey
“Leave medicine to medical men, Captain”
(Deixe a medicina para os médicos, capitão.)
McCoy
Trivia
- Para as cenas envolvendo a bandeira americana o compositor Fred Steiner compôs o único tema original para esse episodio.
- O primeiro esboço de Omega Glory foi escrito como possível segundo piloto para a serie e era bem diferente da versão que foi ao ar.
- Nesse roteiro onde a nave se chamava USS Argentina o oficial medico chefe era mostrado se dissolvendo em cena.
- No roteiro original os poderes telepáticos de Spock eram ainda maiores do que o visto aqui
- Genne Roddenberry gostou tanto desse episodio que ele mesmo enviou pessoalmente seu roteiro para ser considerado para um prêmio Emmy.
- Neste episódio, a USS Enterprise visita outro mundo que possui uma cultura paralela à Terra mas não é o único. Os Outros foram “Miri ” e “Bread and Circuses “. Os episodios ” A Piece of the Action “, ” Patterns of Force “, ” The Paradise Syndrome ” e ” Plato’s Stepchildren ” também mostram culturas derivadas da Terra mas nesses isso acontece por alguma contaminação externa.
- Esta é a segunda das três vezes em que a Enterprise encontra outra nave da sua classe com toda a tripulação morta. As outras duas foram em ” The Doomsday Machine ” e ” The Tholian Web “.
- Essa é segunda participação de Morgan Woodward na série Clássica, curiosamente interpretando outro personagem com sinais de desequilíbrio. O primeiro foi Simon Van Gelder, em ” Dagger of the Mind “.
Ficha Técnica
História de Gene Roddenberry
Dirigido por Vincent McEveety
Exibido em 01 de março de 1968
Título em português: “A Glória Ômega” (AIC-SP), “A Glória Ômega” (VTI-Rio)
Elenco
William Shatner como James Tiberius Kirk
Leonard Nimoy como Spock
DeForest Kelley como Leonard H. McCoy
James Doohan como Montgomery Scott
Walter Koenig como Pavel Andreievich Chekov
Nichelle Nichols como Uhura
George Takei como Hikaru Sulu
Elenco convidado
Morgan Woodward como Capitão Tracey
Roy Jenson como Cloud William
Irene Kelly como Sirah
Morgan Farley como Yang Scholar
David L. Ross como Tenente Galloway
Lloyd Kino como Wu
Ed McCready como Dr. Carter
Frank Atienza como Kohn
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Edição de Carlos Henrique B Santos e Salvador Nogueira
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