Passados 25 anos, Voyager nunca foi tão atual

Há exatos 25 anos, em 16 de janeiro de 1995, ia ao ar o episódio-piloto de Jornada nas Estrelas: Voyager. À época, a franquia de ficção-científica atravessava seu período de maior sucesso até então: A Nova Geração encerrara meses antes a bem-sucedida trajetória de sete temporadas na TV, popularizando, pela primeira vez, a saga junto ao grande público. Acumulara 17 prêmios Emmy (o “Oscar” da televisão) e migrava para o cinema, assumindo o bastão da Série Clássica. Deep Space Nine, spin-off lançado em 1993, firmava-se em território próprio: protagonizado por Avery Brooks, ator negro com sólida carreira no teatro e na música, suscitava questões políticas e filosóficas relevantes num formato criativo novo. Paralelamente, o estúdio tirava do papel um antigo projeto de lançar emissora própria: a United Paramount Network (UPN) – e a novata seria o carro-chefe da programação.

Apesar de todo o hype que a cercava, Voyager teve nascimento difícil. Seus criadores, de início, anunciaram que pretendiam romper uma barreira para muitos intransponível à época: pela primeira vez, Jornada seria protagonizada por uma mulher. “Foi muito importante e foi consistente com a visão de Gene Roddenberry, criador do seriado original”, lembrou Tim Russ, intérprete do personagem Tuvok, em entrevista à Red Carpet News TV. “[A franquia] sempre tentou vislumbrar o futuro de forma mais progressista. Na primeira série, por exemplo, tivemos Nichelle Nichols [Uhura], que foi a primeira mulher negra em horário nobre. Ela interpretava uma oficial da ponte, sendo que, naquele momento [os anos 1960], rolava um conflito racial forte nos Estados Unidos.” No mesmo papo, o colega Garrett Wang (Harry Kim) falou do impacto causado pela novidade: “Uma mulher no comando… Foi enorme! Chegamos a receber ameaças de bomba quando estreamos. A Paramount estava ousando demais para algumas pessoas.”

Alguns problemas ameaçaram o lançamento. O processo de escalação do elenco desgastou todo mundo: a veterana canadense Geneviève Bujold, que já havia iniciado as filmagens no papel principal, voltou atrás e decidiu deixar o projeto, comprometendo o cronograma. A correria para achar uma substituta foi intensa e o estúdio chegou, sim, a entrevistar homens, como “Plano B”. Para o bem geral, Kate Mulgrew, então com 39 anos, conquistou a vaga, começando a gravar dois dias depois da contratação. “Eles me disseram que eu estava fazendo história da televisão. Que era algo sem precedentes. Que estava quebrando o ‘clube dos meninos’. Mas, tendo passado pela situação com Bujold, não tinham certeza de que uma mulher conseguiria, constitucionalmente, lidar com o papel”, contou Kate em vídeo que compõe os extras dos boxes de DVD. “Eu botei na cabeça, determinei que faria. Todos os ‘ternos’ do estúdio estavam lá no primeiro dia de gravação. O diretor, Rick Kolbe, me disse, em particular: ‘Você é quem manda aqui. Aja de acordo’. Assim o fiz e comecei, provavelmente, o capítulo mais extraordinário da minha vida.” A atriz completou, recentemente, a trajetória de sete anos como Red, em Orange Is The New Black.

Passado um quarto de século, Voyager sacramenta seu próprio legado. Nunca antes, na indústria de entretenimento e também em todos os setores econômicos e na política, debateu-se tanto a importância da equidade de gênero – ou cobraram-se atitudes e mudanças efetivas. Em Hollywood, as mulheres ainda reivindicam o justo direito de receber cachês idênticos aos dos colegas. Elencos inteiros se solidarizam, mas há longo caminho a percorrer. No mundo corporativo, é flagrante a desigualdade, não só em salários como na proporção de executivas nas posições de liderança. Nos governos, a disparidade é ainda maior. O feminismo é movimento vivo, pujante e irreversível. Não à toa, tornou-se popular a frase: The future is female (“O futuro é feminino”).

A beleza de Voyager consiste, precisamente, na autoridade conferida à capitão Kathryn Janeway – graças à contribuição criativa da própria Kate Mulgrew. São célebres alguns fatos narrados pela atriz nesse sentido, ao longo dos anos. “Tive que passar por todo o absurdo das mudanças no penteado. O cabelo, o busto, as botas, a voz: era um exame constante do meu gênero. Até que marchei ao escritório dos produtores e disse: ‘Vocês têm que parar com isso. Por que não deixam o público aprender a confiar em mim, se importar comigo, me seguir? [Na segunda temporada], eles me deixaram em paz e nasceu o casamento entre atriz e personagem’”, disse durante a Fan Expo 2012. Kate trabalhava, em média, 18 horas por dia. Os desafios físicos e mentais que enfrentava eram extraordinários: tinha que aprender e reter o “idioma” (ou technobabble) da série, fazer quase todas as cenas sem dublês e, depois, voltar para casa para criar, sozinha, duas crianças. Ficava irritada quando interrompiam cenas simplesmente para mexer em seu cabelo, maquiagem ou figurino, como se aquilo validasse a patente da personagem. A ela também é creditado o fato de Kathryn jamais ter se envolvido romanticamente com o primeiro oficial, Chakotay. “Ela era a capitã! Eu disse não a tudo aquilo. ‘Ela não dormirá com Chakotay. Procurem sexo em outro lugar’”, falou durante painel na Denver Pop Culture Con, em 2017.

Bastidores à parte, ao longo dos sete anos em que ficou no ar, Kathryn Janeway jamais teve o poder decisório questionado e, muito importante destacar, nunca precisou se comportar como homem para legitimar-se na cadeira de comando. A própria premissa do seriado contribuiu: como a nave-tema, USS Voyager, estava perdida, sozinha, do outro lado da galáxia, cabia à sua líder emitir todas as ordens, sem passá-las previamente à aprovação de oficiais superiores – fossem eles homens ou mulheres –, já que estavam fora do alcance do radar.

A série contribui em outros aspectos. O mundo atual, ameaçado pelo risco de retrocessos civilizatórios, pede que Voyager seja revista sob a ótica dos valores morais e mensagens que transmitiu. Saiu em defesa, por exemplo, dos direitos do indivíduo. Destacam-se os episódios “Death Wish”, “Critical Care” e “Renaissance Man”, que fizeram críticas a sistemas ou a cânones de leis abusivos. “Caretaker”, “Prey”, “Counterpoint” e “Survival Instinct” passaram belas lições sobre empatia e compaixão, que andam em falta em vários locais do planeta. “Meld” e “Repentance” foram a fundo em uma questão mais específica: a reabilitação de detentos; vimos que não se combate violência com mais violência (a pena de morte não existe na humanidade do século 24). Houve, também, momentos marcantes de discurso contra a discriminação, o autoritarismo e o revisionismo ou negacionismo históricos: vale (re)assistir a “Resistance”, “Remember”, “Counterpoint” e “Lineage”.

Voyager sobrevive ao teste do tempo em termos estéticos e em ritmo? Isso é muito pessoal, subjetivo mesmo. Mas um bom termômetro foi uma divulgação da plataforma de streaming Netflix em setembro de 2017: o seriado, que à época das filmagens nunca chegou aos números de audiência de A Nova Geração, liderava em quantidade de acessos, dentre todos os spin-offs – e seis dos dez episódios da franquia mais assistidos eram seus. A pesquisa levou em conta 104 milhões de assinantes em 190 países. Mais: daqui a uma semana, estreia em todo o mundo Picard – a sétima série em live-action de Jornada (sem contar os Short Treks). De volta, veremos não apenas o legendário capitão que batiza a aventura, mas também a personagem Sete de Nove, de Voyager, vista pela última vez no finale, de 2001. Comenta-se que Robert Picardo, intérprete do Doutor holográfico, está negociando aparição na segunda temporada. E, é claro, a própria Kate Mulgrew já manifestou publicamente vontade de participar. Resta apenas aguardarmos que novas contribuições a tripulação da USS Voyager agregará aos debates da atualidade.

Citações

— Alferes, apesar do protocolo da Frota Estelar, não gosto de ser chamada de “senhor”.
— Desculpe… senhora.
— Senhora é aceitável em uma crise. Mas prefiro “capitã”.
Kathryn Janeway e Harry Kim, em “Caretaker” (1995).