Capitão Pike na terra da garoa

Jeffrey Hunter veio a São Paulo antes de assumir a USS Enterprise para participar de um festival de cinema e foi eleito um dos mais simpáticos entre as celebridades convidadas. 

Dez anos antes de vestir o uniforme da Frota Estelar e sentar-se na cadeira central da ponte da USS Enterprise no primeiro episódio-piloto de Jornada nas Estrelas, Jeffrey Hunter visitou o Brasil. E o futuro capitão Christopher Pike não veio sozinho. Centenas de atores, diretores, produtores, críticos estrangeiros e gente da indústria cinematográfica de Hollywood, da Europa e da América Latina estiveram em São Paulo em 1954, para o I Festival Internacional de Cinema, realizado entre 12 e 26 de fevereiro.

Naquele ano, São Paulo comemorava o IV Centenário, aniversário de 400 anos da fundação do município. Um grupo de empresários, com apoio do governo, resolveu fazer no Brasil um evento nos moldes dos que regularmente aconteciam no exterior para incorporar no calendário e, assim, tornar aquela que na época era conhecida como “a cidade que mais cresce no mundo”, então já com dois milhões de habitantes, num local realmente cosmopolita.

Ir ao cinema era uma das principais atividades culturais dos moradores da capital paulista, que contava com inúmeras salas na região central da cidade e em bairros de seu entorno. A chamada Cinelândia Paulista tinha o Cine Marrocos, inaugurado em fevereiro de 1951, como sala principal. Localizado ao lado do Theatro Municipal, no coração da cidade, era incrivelmente luxuoso, com fachada e escadarias em mármore, além de um interior belíssimo. A sala de exibição, com dois mezaninos e lugar para duas mil pessoas, tinha um hall de entrada com um bar sofisticado, chafariz, espelhos e poltronas confortáveis. Recebia então a elite paulistana, sempre trajada da forma mais elegante possível para assistir às películas, estrangeiras e nacionais.

Na véspera da abertura do Festival, várias delegações da América Latina e Europa se encontravam em São Paulo, hospedadas nos hotéis Esplanada (esse, ao lado do Cine Marrocos), Interlagos e Jaraguá. Filmes de diversos países eram exibidos no evento. Em 19 de fevereiro chegava a delegação norte-americana, para delírio dos paulistanos. A pista do aeroporto de Congonhas foi invadida pelos fãs, que não acreditavam que veriam seus ídolos tão de perto. Os organizadores do evento prometeram (e não entregaram) nomes como Marilyn Monroe, Marlene Dietrich, Gregory Peck e Ingrid Bergman. Porém trouxeram, entre outros, Errol Flynn, Rhonda Fleming, Fred MacMurray, Joan Fontaine, Edward G. Robinson, Walter Pidgeon (que dois anos depois faria Dr. Morbius no clássico da ficção científica Planeta Proibido) e Barbara Rush, ao lado de seu marido, Jeffrey Hunter, os dois com 27 anos na época.

O jovem casal não era de tanta fama quanto alguns de seus colegas. Ela, atriz de teatro desde criança, começava a aparecer nas telonas, e Hunter era mais conhecido por sua pinta de galã. De boa aparência, havia sido elogiado por Marilyn Monroe anos antes como um dos atores mais bonitos do cinema.

O Festival Internacional foi o principal assunto de São Paulo naqueles dias, gerando congestionamentos enormes no trânsito do Centro e fazendo com que os fãs ficassem nas portas de hotéis, restaurantes e cinemas para ver os atores. Muitos seguiam os carros das celebridades em táxis. Claro que a paparicação exagerada incomodou alguns deles. Errol Flynn, que interpretou Robin Hood no cinema e era um dos mais famosos, estava sempre alcoolizado e com uma piteira de cigarro na boca, sendo rude com a maioria das pessoas que o abordavam. Joan Fontaine raramente parava para um autógrafo, e até mesmo o ator nacional Mário Sérgio era visto de má-vontade com o povo, até sofrer um escorregão nas escadarias no Cine Marrocos e ter de ouvir do público gritos de “bem feito, seu mascarado!”.

Jeffrey Hunter e Barbara Rush não agiram assim. De acordo com a revista Cinelândia, publicada depois do final do Festival, o casal foi apontado como o mais simpático do evento, sempre sorridente e atendendo a todos com paciência e carinho. Em um dos poucos vídeos disponíveis deles andando pela região central de São Paulo, é possível ver os dois no Largo do Paissandu, quase em frente a uma famosa lanchonete especializada em sanduíches bauru que, décadas depois, seria o ponto de encontro de um grupo de fãs de ficção científica da capital paulista.

Dois anos depois, em 1956, Hunter, já separado de Barbara, ficaria famoso com o clássico do faroeste Rastros de Ódio (The Searchers), quando atuou ao lado do grande John Wayne e foi dirigido pela lenda John Ford. Tempos depois, faria Jesus Cristo em Rei dos Reis (King of the Kings, de 1961) e seria escolhido por Gene Roddenberry para interpretar o capitão Pike em “The Cage”, o piloto rejeitado de Jornada, filmado em 1964.

Atualmente, ao andar pelo Centro de São Paulo, é triste olhar para o Cine Marrocos. Abandonado e parcialmente destruído, continua com sua fachada de mármore preservada, embora suja e envolta em tapumes. Seu luxuoso interior não existe mais, e quase ninguém se lembra daqueles dias incríveis em 1954, quando astros internacionais do cinema estiveram na cidade e o sorriso do futuro Christopher Pike encantou os paulistanos.

Material publicado originalmente no volume 6 da Coleção Trek Brasilis, de junho de 2020.