Atores da Série Clássica: carisma vs. desempenho

A Série Clássica é provavelmente a série de Jornada que contou com um maior número de atores e atrizes sem praticamente nenhuma experiência. Entretanto, os personagens ficaram famosos entre o público e, muitas vezes, ganham preferência sobre personagens das séries posteriores, que contavam com atores bem mais experientes.

O segredo é tão somente o carisma. Muitas vezes a canastrice de um ator/atriz são pontos em benefício do personagem que criaram. O público passa a identificar o personagem pelos trejeitos do ator. Um ator canastrão sempre atua da mesma forma e, quando se esforça para melhorar, fica pior. Portanto, o público sabe exatamente o que esperar dele e daí surge um fascínio pelo personagem.

Ao assistir uma série de TV, ainda mais dos anos 60, o público sabe o que o personagem fará, como ele reagirá frente a determinada situação, mesmo sem ter assistido àquele episódio específico. Nesses momentos é o carisma dos atores que impera.

É interessante comparar, por exemplo, William Shatner e Patrick Stewart. O primeiro é um ator medíocre, canastrão e carismático. O segundo é um excelente ator, de primeira linha, e carismático. O público adora os dois atores e os personagens que criaram em Jornada, respectivamente, Kirk e Picard. Os fãs sabem exatamente o que esperar de cada um deles. De Shatner os fãs esperam uma figura heróica, debochada e sabem como ele agirá diante uma determinada situação; por exemplo, todos sabemos, mesmo sem ter visto o episódio, que Kirk beijará a alienígena beldade da semana, que baterá no vilão, que fará discurso humanitário ao fim do episódio etc. De Picard os fãs sabem que verão o inesperado, pois Picard é um personagem mais complexo que agirá de modo completamente diferente em situação até mesmo semelhante a que já enfrentara no passado.

Passaremos agora a uma breve análise do elenco da Série Clássica.

William Shatner: Seja qual for o filme ou série, Jornada ou não, Shatner sempre interpreta Shatner.

Até que ele se saiu bem no início do primeiro ano, talvez porque achasse necessário passar uma imagem de ator sério e garantir emprego em outro filme ou série caso Jornada fracassasse. Percebe-se que Kirk era um capitão mais sério no início, fazia menos piadas com Spock e McCoy e tirava menos sarro dos alienígenas; mas logo na segunda metade do primeiro ano o ator relaxou bastante, atuando de forma descontraída e na maioria das vezes com bom humor.

Tendo levado a sério seu trabalho no princípio da série, no terceiro ano Shatner fez exatamente o contrário. Suas piores interpretações estão nessa temporada e são tão ruins que são hilárias, como, por exemplo, em “The Paradise Syndrome” e “Turnabout Intruder”. Nesse último o corpo do Capitão Kirk é possuído pela mente de uma mulher vingativa e como resultado temos as melhores caras e caretas de Shatner. Impossível não se divertir.

Acreditem ou não, foi criado em Hollywood o termo “Interpretação Capitão Kirk”, onde o ator fala pausadamente, forçando nas palavras e passando um certo ar heróico. O exemplo mais conhecido e cômico aparece no filme “Evil Dead 2” (“Uma Noite Alucinante”), onde Bruce “Eterno Ash” Campbell diz: “There’s… SOMETHING… down… THERE!!!” (“Há… ALGO… lá… EMBAIXO!!!”).

Já nos filmes para o cinema Shatner interpretou um Kirk mais maduro, consciente de que os velhos tempos já passaram e em crise de meia idade. A atuação de Shatner foi muito boa nos filmes II, VI e “Generations”. Gosto principalmente de sua caracterização no segundo filme, bem real e mostrando um Kirk como um homem comum e não “bigger than life”.

A frieza de Kirk no primeiro filme do cinema é devida em grande parte à interpretação de Shatner. O diretor, Robert Wise, disse em entrevistas que Shatner não estava nem um pouco à vontade em retornar ao papel de Kirk. Percebe-se um ar de nervosismo no ator durante o filme inteiro. De certa forma isso contribuiu para a imagem de Kirk no filme como os roteiristas pretendiam, pois o personagem tinha sido promovido a Almirante, passando a exercer funções meramente burocráticas e não pisava dentro de uma nave nos últimos dois anos. Mas Shatner exagerou um pouco e como resultado temos um Kirk completamente diferente do que era na série. Um estranho e quase irreconhecível Kirk. O personagem, para alívio dos fãs, foi “ressuscitado” no segundo filme como o Kirk que conhecíamos.

Quanto à função de diretor, Shatner deixa ainda mais a desejar. O quinto filme para cinema, “A Última Fronteira”, é uma coletânea de erros e uma aula de como não fazer um filme. Na verdade o filme não é tão ruim assim, mas os erros cometidos por Shatner são imperdoáveis. O ator/diretor culpou a Paramount e o orçamento reduzido que lhe foi disponibilizado pelo fracasso. Foi um modo de lavar as suas mãos e até certo ponto é verdadeira essa alegação, pois se o orçamento fosse maior teríamos efeitos especiais de verdade, melhores e mais variados cenários, e isso melhoraria substancialmente o filme, pelo menos esteticamente. A Paramount, por sua vez, acusou Shatner de administrar mal o orçamento, que estourou muito cedo. Mas a raiz do problema é o roteiro. A história é tola, manjada, e renderia um episódio fraco para a TV, quando muito. A edição é precária e tem cenas sem importância que duram uma eternidade, como por exemplo a cena do acampamento na floresta que persiste até um quarto da duração do filme, e a história nem tinha começado ainda. Os diálogos são igualmente péssimos e ainda temos que aturar aquele flerte que Uhura dá em Scotty. Acho que Shatner nunca prestou muita atenção no universo de Jornada nas Estrelas onde ele convive há mais de 35 anos.

O único ponto do quinto filme que pode ser aproveitado são alguns bons momentos entre Kirk, Spock e McCoy. A amizade deles é bem realçada no filme e isso é um ponto positivo.

Leonard Nimoy:Sem sombra de dúvida o melhor ator da Série Clássica. Encarnou o personagem de Spock à perfeição. Sempre se preocupou com o desenvolvimento da série, tendo sido um dos maiores colaboradores para criar a cultura Vulcana. Foi Nimoy quem criou o elo mental, o cumprimento vulcano e a pinça vulcana.

Uma de suas melhores atuações reside no episódio “The Naked Time”, em que um vírus toma conta da tripulação da Enterprise, fazendo com que seus sentimentos mais profundos venham à superfície. Eu considero esse episódio muito exagerado, mas Nimoy se destaca nos momentos em que Spock perde o controle sobre suas emoções. Efeito semelhante ocorreu com o personagem em “This Side of Paradise”, mas sem o mesmo impacto e a profundidade do episódio anterior.

Nimoy demonstra seu bom humor ao eleger como seu episódio favorito “Spock’s Brain”. Nesse episódio o cérebro de Spock é roubado por mulheres alienígenas que pretendem usá-lo para controlar seu mundo. Temos a bizarra imagem de um Spock “desmiolado” sendo comandado por controle remoto. É sem dúvida um dos piores e ao mesmo tempo o mais hilário dos episódios já produzidos. Imaginem o esforço de Nimoy para conter as risadas durante as cenas em que anda feito um zumbi.

Como diretor Nimoy também fez um excelente trabalho ao dirigir os filmes III e IV. Muitos fãs criticam o terceiro filme, mas eu o considero muito bom, pois tem um senso de aventura e misticismo que poucos ou até mesmo nenhum filme de hoje em dia sabe proporcionar. Os efeitos especiais podem ser imperfeitos, os vilões Klingons caricatos demais, as situações forçadas demais etc., mas é um típico filme de ficção dos meados dos anos 80, ou seja, divertido e descontraído. Já o quarto filme é sem dúvida, como muitos já disseram, uma pérola de humor dos anos 80; é um programa muito divertido, inteligente e contém uma mensagem ecológica que era principalmente importante na época de estréia do filme. Em ambos os filmes Nimoy soube dosar muito bem os elementos de aventura, ação, humor e ficção científica. Foram bons trabalhos de uma pessoa extremamente competente.

DeForest Kelley: Um ator razoável e competente, antes de Jornada fez vários papéis secundários em westerns.

No começo da série Kelley exagerava demais. A maioria das caras que ele faz durante o episódio “The Corbomite Maneuver” é risível. Para qualquer coisa que ele escuta ou vê nesse episódio suas sobrancelhas se erguem e ele faz cara mista de surpresa e curiosidade. Mais tarde esse gesto de erguer as sobrancelhas passou para Spock, sendo uma de suas marcas registradas.

Assim como Shatner, Kelley também passou a interpretar de maneira mais descontraída, mais natural, em meados do primeiro ano.

Acho difícil eleger o episódio que possui sua melhor interpretação como McCoy. Muitos fãs elegeram “For the World is Hollow and I Have Touched the Sky”, mas ouso discordar. Nesse episódio McCoy teve mais destaque do que eu qualquer outro, mas não diria que é o melhor trabalho de Kelley por esse fato. Eu diria que sua melhor interpretação foi no episódio “Bread and Circuses”, e não no contexto do episódio inteiro, mas simplesmente por uma única frase em que McCoy confronta Spock — “Sabe por que você não teme morrer, Spock? É porque você teme ainda mais viver”. A intensidade em que ele profere a frase é digna de a colocarmos como a melhor frase de McCoy em toda a série.

Uma de suas piores interpretações foi no episódio “The City on the Edge of Forever”, onde McCoy é acidentalmente drogado e sofre um surto de esquizofrenia. E dá-lhe caretas e gritos. Fora isso, esse é um dos melhores, senão o melhor, episódio de toda a série.

James Doohan: James Doohan é, sempre foi e sempre será Scotty.

O sotaque escocês que ele criou para o personagem é impagável, assim como suas reclamações quando Kirk ordenava que ele fizesse o impossível na engenharia.

No filmes para o cinema Doohan conservou todo o carisma de Scotty e até fez interpretações de qualidade, principalmente nos filmes II e VI. Uma frase que nunca esquecerei, pois me deixou impressionado, foi a impressão, nos sexto filme, que Scotty fez da filha do Chanceler Gorkon: “That Klingon bitch killed her own father!” (“Aquela cachorra Klingou matou o próprio pai!”). Uma frase bem forte, e de notável efeito, que mostrou um lado de Scotty que não conhecíamos.

Na Nova Geração Doohan fez uma emocionante e inesquecível aparição como Scotty. Foi uma das mais belas homenagens que uma série contemporânea de Jornada fez à Série Clássica. Outras homenagens foram nos episódios “Sarek” e “Unification”, ambos também da Nova Geração; e “Blood Oath” e “Trials and Tribble-ations”, da Deep Space Nine. Voyager teve também seu episódio comemorativo da Série Clássica, intitulado “Flashback”, mas eu dificilmente chamaria aquilo de homenagem e sim de abominação pela tamanha falta de respeito perpetrada contra a Série Clássica.

O pior momento de Scotty, e talvez seu único, foi a ridícula cena em que ele bate a cabeça no corredor da Enterprise, no quinto filme para o cinema, e desmaia em conseqüência. Não se pode culpar Doohan em hipótese alguma por essa “cena” e sim o roteirista e diretor do filme, ambos William Shatner.

George Takei: O único mérito de Takei é a sua voz, forte e autoritária. Fora isso não vejo nenhuma qualidade de bom ator. Sempre o considerei inexpressivo e sem carisma.

Acho que a sua melhor e única verdadeira atuação foi como o capitão Sulu no sexto filme para o cinema. Ele até impressionou um pouco, marcando uma certa presença nesse filme. Mas por outro lado o achei terrível no episódio “Flashback”, de Voyager.

Takei é visto por muitos fãs, inclusive por mim, como um oportunista, cuja vida atualmente vira em torno de aparecer em convenções para fazer lobby para a criação da série do capitão Sulu. Sua aparição no Brasil em 1996 foi no mínimo catastrófica. Com aquele sorriso forçado (e falso), fazendo sinal de cumprimento Vulcano a cada 30 segundos, contando piadas sem graça e esgotando a paciência de qualquer pessoa com sua obsessão pela série do Sulu; é uma péssima idéia que todo mundo já percebeu, menos ele.

Nichelle Nichols: Eu mesmo não chamaria Nichelle de atriz, e sim de enfeite na ponte da Enterprise. Uhura foi uma personagem que não fez absolutamente nada durante a série, ficando restrita a fazer cara de medo e abrir comunicações.

Suas piores interpretações foram nos episódios “Space Seed”, “The City on the Edge of Forever” e “Plato’s Stepchildren”.

Talvez a maior contribuição de Uhura na série tenha sido justamente no episódio “Plato’s Stepchildren”, pois o beijo com Kirk foi o primeiro beijo interracial da história da televisão norte-americana. Isso é de indiscutível importância.

Interessante é que Uhura ficou bem mais interessante nos filmes para o cinema. O amadurecimento da atriz com certeza teve suas influências e ela não parecia mais assustada com a câmera de filmagem. Mesmo não tendo uma participação tão importante nas histórias ela marcou um pouco mais de presença na ponte e até ganhou algumas frases interessantes. Ressalte-se ainda que Uhura ajudou a bolar o plano para destruir a nave Klingon camuflada no sexto filme para o cinema. É um dos pequenos toques que fazem com que personagens secundários ganhem um melhor destaque.

Walter Koenig: Koenig foi o maior exemplo de que o carisma se sobrepõe a canastrice. O ator tem simpatia de sobra e o sotaque russo tinha seu charme.

Interessante é o fato de Gene Roddenberry ter criado o personagem de Chekov devido às reclamações de alguns soviéticos de que era injusto uma nave com uma grande diversidade de raças não contar com nenhum russo a bordo, ainda mais sendo eles os pioneiros na era espacial. Entretanto, sempre que Chekov fazia um comentário sobre a história ou a importância de seu povo (comentários esses nacionalistas e não comunistas, pois estávamos em plena Guerra Fria), os demais personagens riam ou simplesmente o olhavam com uma cara de “e daí?”, mostrando sua indiferença. Também era muito comum Chekov mencionar por equívoco algum fato histórico da Rússia ou algum feito de uma famosa personalidade daquele país para em seguida ser corrigido por Kirk ou Spock, que diziam que na verdade tal fato ou ato fora de autoria de algum americano ou inglês. Além disso, Chekov era um típico russo americanizado, tendo direito até mesmo a um penteado típico dos Monkees.

O carisma do ator, pelo menos, fez com que Chekov não se tornasse mais uma relíquia da Guerra Fria, sendo um dos personagens mais queridos pelos fãs.

Um dos melhores momentos do personagem foi no sexto filme, em que ele acusa um tripulante de sabotagem citando a Cinderela e o obriga a calçar a bota usada pelo verdadeiro sabotador. É impagável.

Seus piores momentos são todos em que ele grita de dor –vide o episódio “Mirror, Mirror”, em que Chekov é torturado, e no primeiro filme para o cinema, quando ele queima a mão no console. É insuportável.

Artigo originalmente publicado no conteúdo clássico do Trek Brasilis.