TNG 6×23: Rightful Heir

Religião e política colidem em meio à “milagrosa” volta de Kahless

Sinopse

Data estelar: 46852.2.

Worf retorna de uma missão de resgate em uma crise de fé. Após perder a hora de se apresentar à ponte em meio a um ritual perigoso conduzido com fogo em seus aposentos, Picard concede uma licença para que ele possa ir até Boreth, planeta que abriga um monastério sagrado em que os fiéis esperam o retorno de Kahless, o líder que unificou o Império Klingon há mais de um mil anos.

Lá, Worf busca visões iluminadoras de Kahless, guiado por Koroth, um dos guardiões do monastério. Ele enfim testemunha a materialização do lendário guerreiro diante de si e se choca ao perceber que ele é real, não apenas uma visão – Kahless proclama ter voltado.

Worf se mostra cético, bem como Koroth. Mas quando Kahless reconta a história de como forjara o primeiro bat’leth, a partir de uma mecha de seu próprio cabelo – lenda que não faz parte dos escritos sagrados e é conhecida por pouquíssimos –, Koroth professa sua fé nele. Worf ainda está em dúvida e, quando Kahless diz que assumirá a liderança do império, ele o desafia para um duelo. Em meio à luta, Kahless desperta o orgulho klingon em todos os presentes, o que faz Worf repensar.

A Enterprise é enviada a Boreth para trasportar o tal que se diz Kahless para o mundo natal klingon, a pedido do chanceler Gowron, que intercepta a nave federada a caminho para escrutinar essa aparição que pode abalar as estruturas de poder do império. Gowron está convencido de que tudo não passa de uma fraude e traz a bordo uma adaga que teria resquícios do sangue do verdadeiro Kahless. Quando Crusher procede com uma análise, descobre que o DNA do passageiro a bordo da Enterprise é idêntico ao da antiga amostra de sangue.

Gowron ainda duvida e duela com Kahless, vencendo-o facilmente em combate. O chanceler sai rindo daquele que supostamente seria o maior guerreiro de todos. Worf então pressiona Koroth, que revela a verdade: Kahless é um clone, feito a partir do DNA do original e implantado com lembranças e histórias dos textos sagrados klingons.

A primeira reação de Worf é de escárnio e ele pretende expor a farsa a Gowron. Contudo, ver que alguns tripulantes da nave do chanceler estão à espera de Kahless e querem vê-lo, mesmo depois de ele ter sido derrotado em combate, o faz repensar.

Worf então propõe a Gowron e Koroth uma solução intermediária, para restaurar a fé do povo klingon e ao mesmo tempo preservar a integridade do império: Kahless seria introduzido como o que é, não o próprio guerreiro lendário, mas seu clone e herdeiro, assumindo o posto de imperador. O poder político e militar, contudo, seguiria com Gowron e o Alto Conselho. Todos concordam e Kahless parte da Enterprise, deixando Worf com a ideia de que talvez o importante não seja o retorno ou a existência de Kahless, mas as palavras e ensinamentos que ele legou a todos os klingons.

Comentários

“Rightful Heir” é um episódio que traz várias camadas e aborda de maneira original muitos temas relevantes, como fé, ceticismo e a interface (por vezes cínica, muitas vezes perigosa) entre religião e política, usando como pano de fundo a cultura klingon.

O segmento segue a tradição de Star Trek de não atribuir a personagens humanos, em geral vistos como figuras sem religião declarada, dilemas de fé típicos dos dias atuais. Em vez disso, optam pelo uso de Worf, que torna além de tudo a alegoria mais potente e com menos controvérsia. A história é muito efetiva e Michael Dorn faz um ótimo trabalho em meio à crise de fé de seu personagem.

A história toda de Kahless, figura originalmente estabelecida em “The Savage Curtain”, da Série Clássica, segue mais ou menos o roteiro típico do messianismo judaico-cristão, o que nos ajuda a traçar um paralelo forte entre o que se vê em tela e o que vivemos hoje em nossa sociedade, ao mesmo tempo mantendo distância segura das religiões da Terra para evitar ofender membros da audiência.

A despeito dessa distância segura fornecida pela alegoria, é de se elogiar a delicadeza com que o roteiro de Ronald D. Moore trata a crença dos klingons, e de Worf em particular, em Kahless, essa espécie de Jesus klingon que prometeu voltar um dia para liderar seu povo. Nós vemos que a questão é complexa para Worf e que ele não tem respostas prontas para tudo que está vivenciando – o que normalmente é verdadeiro quando se trata de questões de fé.

E quanto a Koroth e os guardiões de Boreth? Eles realmente acreditam estar ajudando, por meio da tecnologia de clonagem, a cumprir uma profecia, trazendo de volta dos mortos algo que possa ser tido como o verdadeiro Kahless? Ou tudo não passa de uma manobra para tomar o poder de Gowron, convertendo o império em uma teocracia? Temos opiniões e argumentos para todos os lados, e fica a critério da audiência fazer essa leitura por si mesma e julgar as ações dos envolvidos na trama.

A única mensagem taxativa que o episódio carrega, em alto e bom som, é a da importância da separação entre religião e governo. Ao final, percebendo que ambas têm um papel importante em sua sociedade, Worf propõe uma solução em que nenhuma delas é negada, mas cada uma fica dentro de sua própria esfera de aplicabilidade. A liderança moral e religiosa recai sobre o clone de Kahless; já o poder político e o governo em si permanecem com Gowron, o líder secular do império. É como tem de ser.

Para além de seu significado episódico, o segmento segue construindo a rica tapeçaria política dos klingons, processo iniciado com “Sins of the Father”, da terceira temporada, e que se estenderia para além de A Nova Geração, com a transferência de Worf para Deep Space Nine a partir de seu quarto ano.

Em termos de valores de produção, temos um episódio até modesto. Os cenários internos do monastério de Boreth são todos claustrofóbicos e pouco detalhados, tendo como destaque o trono de Kahless e o quadro do klingon ao fundo. Os figurinos também são muito bons, fugindo da tradicional armadura dos guerreiros. Tanto o traje de Kahless, emulando peles rústicas, como o manto clerical de Koroth são criações interessantes.

A pintura que representa o lado externo do monastério, por sua vez, é bonita, mas não tem detalhamento suficiente para se manter crível com a remasterização da série em alta definição. Percebe-se com clareza que se trata de uma pintura, não um lugar real.

Diante das limitações, Winrich Kolbe faz um ótimo trabalho de direção, focando nos personagens e retratando uma história que, de forma muito direta, aborda do que se trata a fé – abraçar uma crença como verdade pessoal, a despeito da indisponibilidade de evidências para corroborá-la ou mesmo diante de fatos que possam desacreditá-la. Grande episódio.

Avaliação

Citações

“Kahless left us, all of us, a powerful legacy. A way of thinking and acting that makes us Klingon. If his words hold wisdom and his philosophy is honorable, what does it matter if he returns? What is important is that we follow his teachings. Perhaps the words are more important than the man.”
(Kahless nos deixou, a todos, um poderoso legado. Um modo de pensar e agir que faz de nós klingons. Se suas palavras têm sabedoria e sua filosofia é honrada, o que importa se ele retorna? O importante é que sigamos seus ensinamentos. Talvez as palavras sejam mais importantes que o homem.)
Kahless

Trivia

  • Ao apresentar a história, James E. Brooks a descreveu como “Jurassic Worf”, em referência ao filme Jurassic Park, de 1993. Sua premissa original se concentrava mais na intriga entre os clérigos, mas Ronald D. Moore decidiu seguir outro caminho no roteiro, explorando a espiritualidade e a fé no século 24. Moore explicou: “Achei que era uma ideia muito bacana e que era uma oportunidade para fazer um episódio diferente dos que já havíamos feito. O assunto não era algo que tivéssemos abordado, então eu estava ansioso para fazê-lo. Eu queria fazer algo interessante. Tenho muito orgulho do roteiro. Ele lida com fé e crença, coisas com que não lidamos normalmente em Star Trek.”
  • Jeri Taylor lembra que o episódio disparou discussões entre a equipe de roteiristas sobre suas visões de fé e de seu lugar em A Nova Geração. “Gene Roddenberry era basicamente um humanista secular, e eu não acho que a história teria funcionado com qualquer outro personagem, exceto Worf.”
  • Brooks não envolvia Kahless em sua premissa, mas Moore viu ali uma oportunidade de desenvolver e redefinir o personagem visto originalmente em “The Savage Curtain”, da Série Clássica. Lá, Kahless é retratado de forma bem diferente, mas a suposição (em retrospecto) é a de que aquela era a forma como Kirk imaginava Kahless.
  • Muitas das histórias lendárias de Kahless acabaram saindo de diálogos cortados escritos para o episódio “Birthright, Part II”.
  • Rick Berman se lembra de ter tido muitas discussões com Ronald D. Moore por conta do episódio. “O personagem de Kahless e sua história e diálogos eram um pouco similares demais a Cristo para mim. Tivemos longos debates e eventualmente foi modificado por Ron de um jeito que acho que o tornou muito melhor. Acho que ele não apenas resolveu meus problemas, mas fez o [episódio] melhor.”
  • Em uma fala cortada do episódio, Data revelava que a morte de Kahless teria acontecido 1.547 anos antes do episódio, ou seja, no ano 822 d.C. Em outra, a tripulação cogita que o clone de Kahless fosse um ardil das irmãs Duras ou da “facção B’nok”. Também havia uma explicação para a ausência de Alexander, que estaria visitando os pais de Worf na Terra.
  • “Rightful Heir” foi filmado entre 9 e 18 de março de 1993, nos galpões 8, 9 e 16 da Paramount.
  • O diretor Winrich Kolbe comentou sobre as dificuldades de fazer o episódio. “Ele começou bem convencional, mas uma vez que fomos ao galpão 16, passamos três dias lá. Estava totalmente cheio de fumaça, para termos aquela névoa… ainda estou tossindo. O pessoal dos efeitos especiais vivia nos dizendo que era não venenoso e apenas um irritante leve. Bem, eu tive uma alergia bem pesada que acho que foi causada pela fumaça, mas o episódio ficou ótimo. Parece um filme.”
  • O design do templo klingon foi inspirado por estruturas similares que Dan Curry, o responsável pela pintura, havia visto no Himalaia.
  • Neste episódio, Gowron diz que não há um imperador klingon há 300 anos. Segundo Moore, a referência anterior a um imperador em “Sins of the Father” foi algo jogado antes que os roteiristas estabelecessem com firmeza a estrutura do governo klingon, em “Reunion”.
  • O monastério de Boreth seria revisitado, atrelado a cristais do tempo, em “Through the Valley of Shadows”, episódio da segunda temporada de Discovery.
  • Brannon Braga fez o seguinte comentário sobre o episódio: “Ele tem metáforas poderosas para crenças religiosas atuais. Star Trek nunca havia abordado religião com tanto vigor quanto neste episódio. O homem interpretando Kahless como o Jesus Cristo do Império Klingon foi ótimo, e a atuação de Michael Dorn é poderosa. Ele tem o potencial para ser um episódio muito controverso que levará o personagem de Worf em algumas direções novas e interessantes.”
  • Rick Berman também elogiou a interpretação de Kahless. “A performance de Kevin Conway é ótima e é um episódio maravilhoso.”
  • LeVar Burton (La Forge) e Marina Sirtis (Troi) não aparecem neste episódio. Mas eles tinham falas no roteiro original, que acabaram cortadas.
  • Esta é a última aparição de Robert O’Reilly como Gowron em A Nova Geração. O ator e o personagem voltariam a Star Trek em Deep Space Nine, até sua morte em “Tacking Into the Wind”, da sétima temporada, também escrito por Ronald D. Moore.

Ficha Técnica

História de James E. Brooks
Roteiro de Ronald D. Moore
Dirigido por Winrich Kolbe

Exibido em 17 de maio de 1993 

Título em português: “Herdeiro Legítimo”

Elenco

Patrick Stewart como Jean-Luc Picard
Jonathan Frakes como William Thomas Riker
Brent Spiner como Data
LeVar Burton como Geordi La Forge
Michael Dorn como Worf
Marina Sirtis como Deanna Troi
Gates McFadden como Beverly Crusher

Elenco convidado

Alan Oppenheimer como Koroth
Robert O’Reilly como Gowron
Norman Snow como Torin
Charles Esten como Divok
Kevin Conway como Kahless
Majel Barrett como voz do computador

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Edição de Maria Lucia Rácz
Revisão de Susana Alexandria

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