Holodeck, sátira à la Saturday Night Live e boas intenções se mesclam em episódio controverso
Sinopse
Data estelar: desconhecida
A USS Adventure enfrenta os agonianos, que pretendem roubar as células cerebrais de toda a tripulação… em uma série ficcional dos anos 1960 chamada The Last Frontier. Ela é parte de uma simulação iniciada por La’An Noonien-Singh para testar uma nova tecnologia da Frota Estelar para missões espaciais de longa duração: a chamada Sala de Recreação, mais popularmente conhecida como holodeck.
Pike atribui a ela a missão de testar o artefato até seus limites, enquanto a Enterprise estuda de perto uma estrela de nêutrons no interior do cinturão kitoliano. Para isso, La’An solicita ao computador, sob a supervisão de Scotty, a criação de uma história de mistério que possa desafiá-la, no estilo de Amelia Moon, uma detective ficcional sessentista tornada famosa em romances que a tenente conhecera após ter sido resgatada dos gorns, quando criança. O engenheiro explica que os personagens usarão a aparência da tripulação, registrada pelo teletransporte, para dar realismo ao programa.
Ao entrar no holodeck após solicitar o início da simulação, La’An encontra Spock, que diz estar fazendo checagens finais e se afasta, enquanto ela se vê como Amelia Moon em uma mansão em Hollywood, Califórnia, em 1969. O produtor Tony Hart está morto, e a detetive foi chamada para descobrir quem o matou, e por quê. A responsável por encontrar o cadáver foi Joni Glass (com a aparência de Uhura), agente de muitos dos talentos da série The Last Frontier. Ela estava na casa de Hart para uma reunião que também incluía vários envolvidos com o programa, como a ex-atriz e produtora Sunny Lupino (Una) e os astros Maxwell Saint (James Kirk), Lee Woods (Ortegas) e Adelaide Shaw (Chapel), acompanhada do namorado e astro do rock Anthony MacBeau (M’Benga), além do criador da série, TK Bellows (Pike).
As primeiras suspeitas recaem sobre Sunny, que teria matado Tony por ter decidido cancelar a série, causando prejuízos que a impediriam de pagar um empréstimo à máfia. Mas a hipótese logo cai por terra quando a própria Sunny é envenenada e morre, deixando Amelia Moon agora com dois assassinatos por resolver. La’An decide que precisa de um parceiro, e Spock aparece para dar suporte. Eles entrevistam cada um dos suspeitos, todos com algum motivo justificável para o crime e sem álibis. As coisas se complicam ainda mais quando Lee Woods é morta também. A tenente encontra uma pista na lareira – uma tira de filme que foi usada como arma do crime para estrangular Hart. Perto de resolver o mistério, ela quase é atingida por um lustre que cai do teto. Spock nota que ela está sangrando, o que indica uma falha dos sistemas de segurança do holodeck.
Do lado de fora, os problemas são ainda maiores. O sistema travou, não pode ser desligado, Scotty não consegue contato com La’An presa na simulação, e o dispositivo está consumindo cada vez mais energia e poder computacional da nave. Quando a Enterprise está prestes a ser atingida por uma rajada de raios gama da estrela de nêutrons, falha em responder aos comandos. Ou Scott consegue terminar a simulação, e rápido, ou toda a tripulação morrerá. O engenheiro se desespera e pede ajuda a Uhura. A única forma de encerrar o programa é com La’An solucionando o mistério, mas como comunicar isso a ela? Uhura sugere inserir de alguma forma uma mensagem como parte da própria simulação.
Eis que Scotty surge como um contrarregra nas gravações de The Last Frontier no filme colhido por La’An. O trecho também revela que TK Bellows seria demitido por Hart, dando a mais forte pista de quem poderia ter sido o assassino. TK nega envolvimento, mas, embriagado e com uma arma em punho, ameaça La’An. Seu disparo acaba acertando Spock, de raspão. Quando a tenente vai abraçá-lo, percebe que há algo errado com ele – esse não é o verdadeiro Spock. Tudo então se encaixa na cabeça dela: o vulcano é apenas mais uma recriação holográfica para desafiar a própria La’An, como pedido ao computador. Ele é o assassino. Ao desvendar o mistério, o programa é encerrado.
La’An e Scott apresentam seu relatório do teste a Pike e Una, indicando que a tecnologia ainda é muito arriscada para ser incorporada em naves estelares e que, caso um dia seja implementada, deve ter um sistema de alimentação de energia independente do resto da nave. Encerrado o trabalho, La’An vai ao encontro do verdadeiro Spock e se dá conta de como está atraída por ele. Em meio a mais uma sessão de dança, os dois se beijam.
Comentários
“A Space Adventure Hour” é possivelmente o episódio mais controverso de Strange New Worlds, ou, no mínimo, o mais metalinguístico. Por ousar pisar em “solo sagrado”, por assim dizer, ele encanta e incomoda, tudo ao mesmo tempo. Nesse aspecto, não deixa de ser brilhante – espera-se de obras de arte que sejam mesmo provocativas. De produções televisivas, costumamos esperar menos. Então, podemos começar por aí: o episódio é ótimo enquanto arte. Não tanto como entretenimento.
Explico: a coisa toda da ficção dentro de uma ficção que retrata uma realidade que reflete a própria ficção na qual está inserida é muito interessante e divertida. Perca alguns segundos para processar isso. Ou melhor, vamos decodificar juntos: a ficção (a série de TV The Last Frontier) dentro de uma ficção (o holorromance de Amelia Moon, detetive particular) que retrata uma realidade (a criação e a existência de uma série sci-fi espacial com alegorias) que reflete a própria ficção na qual está inserida (Strange New Worlds, enquanto produto de Star Trek). Convenhamos, é uma ideia complexa, que, se não por mais nada, já encanta pela própria complicação.
Não bastasse isso, ela procura inserir mensagens e recados ao longo desses metarretratos, que atingirão públicos variados, de acordo com seu nível de conhecimento sobre os bastidores de Star Trek. Exemplo: quantos na audiência perceberão que Anson Mount, no papel de TK Bellows, adotou alguns trejeitos e modo de falar muito similares aos de Gene Roddenberry, criador de Star Trek? Quantos notarão que a personagem de Rebecca Romijn, Sunny Domita, ex-atriz que virou produtora, guarda grandes semelhanças com Lucille Ball, a dona da Desilu e responsável por encampar a ideia de Roddenberry para Star Trek? E até o mais distraído dos espectadores há de notar que Paul Wesley faz aqui uma imitação dupla de William Shatner como Maxwell Saint, tanto dentro de seu personagem (o capitão) como fora (o ator). Esses são três exemplos, mas certamente há muitos outros e será difícil uma única pessoa identificar todos.
A trama do mistério hollywoodiano, por sua vez, é um eco fortíssimo dos romances de Agatha Christie, trocando Hercule Poirot por Amelia Moon e o começo do século 20 pelos anos 1960, por força do paralelismo com Star Trek. La’An em essência ganha um Dixon Hill para chamar de seu, em outro eco interno à franquia. A primeira grande aventura de holodeck foi “The Big Goodbye”, em A Nova Geração, em que Picard recria uma história de seu detetive favorito, o tal Dixon Hill, e acaba preso dentro do holodeck, com os sistemas de segurança desativados. Coincidência, né?
Aqui, para completar o drama, La’An instrui o computador a criar um adversário capaz de desafiá-la – exatamente o mesmo erro cometido em “Elementary, Dear Data”, também de A Nova Geração, que faz com que o computador crie um Moriarty capaz de derrotar não seu rival fictício Sherlock Holmes, mas o próprio Data, concedendo ao personagem senciência. A divisa entre a referência e o plágio se dilui um bocado nesse caso, e telegrafa de saída (ao para quem está familiarizado com essas histórias antigas) onde esse “mistério” pode terminar.
Por falar nele, o tal “mistério” – o assassinato do produtor Tony Hart, seguido por outras duas mortes – é profundamente desinteressante. Passamos meia hora na mansão e os aspectos metalinguísticos nos distraem da suposta trama que deveríamos acompanhar.
Soma-se a isso a leitura que o episódio faz da Série Clássica, com todas as suas idiossincrasias. Há, com certeza, afeto envolvido, mas o tom jocoso (necessário para sustentar o humor) faz alguns fãs do seriado antigo se perguntarem se os produtores estão tentando ofender sua inteligência. Claro que a gente dá risada com Paul Wesley fazendo sua imitação de Kirk, dos cenários toscos, dos diálogos idiotizados (“precisamos de nossas células cerebrais, por muitos motivos de ciência”, diz a primeira oficial)… Mas é uma homenagem ou uma crítica? Uma leitura possível é que os produtores veem Strange New Worlds como a versão “boa” da Série Clássica, contendo todos os mesmos elementos, mas sem o verniz sessentista que data o programa original.
A intenção é decerto boa, como expressa no poderoso discurso que coube a Celia Rose Gooding, como Joni Glass, ao defender o poder transformador e inspirador de uma série de televisão como aquela, disfarçada como entretenimento raso. Mas parece quase perfunctório, depois de vários minutos abertamente tirando sarro de muitos dos elementos que tornaram a série icônica. Não será surpreendente se alguns acharem que há ofensa à memória de Star Trek e de alguns dos envolvidos em sua realização.
No fim das contas, não há reflexão ou metalinguagem que disfarce o fato de que o miolo do episódio é arrastado e os personagens da trama do holodeck trazem pouco além de suas referências de origem – embora caiba dizer que todos os atores se mostraram muito bem e, com certeza, se divertiram a valer nas filmagens, sob a direção do sempre entusiasmado Jonathan Frakes. O drama de Scotty para desligar o holodeck por vezes parece mais interessante que a história se desenrolando dentro dele.
Também pesa contra a iniciativa o excesso de derivação, uma das marcas dessa terceira temporada: temos um mix de histórias pregressas de holodeck (feitas à exaustão na segunda era televisiva de Star Trek) combinadas ao que poderia ser um esquete de Saturday Night Live. O aspecto metalinguístico é corajoso e inovador, mas também exagerado e deselegante. Ele tenta dizer muitas coisas e, ao mesmo tempo, não empurra nenhuma mensagem com clareza. Contraste-o, por exemplo, com outro segmento fortemente metalinguístico de Star Trek, o clássico “Far Beyond the Stars”, de Deep Space Nine. Ali, vemos na pele de Benny Russell, ao longo de 45 minutos e de forma muito poderosa, o que aqui é um discurso de um minuto feito casualmente por uma personagem secundária, em meio a um tom em que predomina a sátira.
Ironicamente, a sátira é o que o episódio tem de melhor. Colocando de lado ambições maiores (a “arte”, por assim dizer), resta nele o entretenimento propiciado pelo humor, uma das qualidades que Strange New Worlds consegue trabalhar com mais facilidade (nem sempre em favor do universo ficcional em que está inserida). Por esse aspecto, “A Space Adventure Hour” oferece diversão. Quem se detiver mais a isso, poupando-se de grandes especulações filosóficas, sairá mais feliz dele.
Avaliação
Citações
“Galaxies, the last frontier. This is the tale of the USS Adventure on its 84-month mission as it treks across the furthest reaches of the universe, striving to find unknown life, unexplained phenomena, and new space destinations. To go forward, to go beyond, to go further and bolder than anyone ever before.”
(Galáxias, a última fronteira. Essa é a história da USS Adventure em sua missão de 84 meses em uma jornada pelos mais longínquos cantos do universo, no esforço para encontrar vida desconhecida, fenômenos inexplicados e novos destinos espaciais. Ir em frente, ir além, ir mais longe e mais audaciosamente do que qualquer um já foi antes.)
Narração de abertura de The Last Frontier
“You don’t think some kid out there is going to see this show and spend the rest of their life searching the stars? You don’t think a person can love a piece of art or music or a story so much that it heals them? Shows them parts of themselves they’d never even seen before? And give them hope? … A show like this could’ve gone on forever. Given generations of fans a place to feel seen, to belong, something to believe in again, no matter who they were or where they came from.”
(“Você não acha que alguma criança lá fora vai ver essa série e passar o resto da vida buscando as estrelas? Você não acha que uma pessoa possa amar tanto uma obra de arte ou música ou história que isso a cure? Mostrá-la partes dela mesma que nunca viram antes? E dar a elas esperança? … Uma série como essa poderia prosseguir para sempre. Dar a gerações de fãs um lugar para se sentirem vistos, pertencentes, terem algo em que acreditar novamente, não importa quem fossem ou de onde tenham vindo.”)
Joni Gloss, sobre The Last Frontier (e Star Trek)
Trivia
- Este episódio foi exibido para a plateia do painel de Star Trek na San Diego Comic Con 2025, no dia 25 de julho, poucos dias antes de sua estreia global pelo serviço de streaming Paramount+, no dia 31.
- A roteirista Dana Horgan assina seu terceiro episódio de Strange New Worlds, depois de “Ad Astra per Aspera” e “Subspace Rhapsody”.
- A humorista Kathryn Lyn foi contratada inicialmente como “consultora de cânone” em Lower Decks e acabou incorporada pelo showrunner Mike McMahan como roteirista, onde escreveu o episódio “wej Duj”, indicado ao Prêmio Hugo de Ficção Científica, e inspirou a personagem T’Lyn. Saltando para Strange New Worlds, ela escreveu “Charades” e “Those Old Scientists”, na segunda temporada.
- O showrunner Akiva Goldsman revelou em entrevista que a história nasceu inspirado por “Far Beyond the Stars”, de Deep Space Nine. O uso do holodeck viria mais tarde no desenvolvimento da trama.
- Jonathan Frakes volta para dirigir seu terceiro episódio de Strange New Worlds e faz uma ponta de voz como o “diretor de The Last Frontier”, na sequência final de créditos.
- A atriz Kira Guloien, que faz aqui o agoniano, interpretou a barwoman edosiana de “Wedding Bell Blues”.
- O episódio abre com uma cena da série fictícia The Last Frontier, uma sátira da Série Clássica, seguida por uma sequência de abertura que usa elementos adaptados da versão remasterizada do seriado antigo, com a USS Adventure em lugar da Enterprise.
- Pike estabelece neste episódio que a recreation room, vista em “The Practical Joker”, da Série Animada, como uma precursora do holodeck, introduzido em “Encounter at Farpoint”, de A Nova Geração, são essencialmente a mesma coisa.
- Os problemas vistos com o holodeck aqui explicam por que, em Voyager, o sistema tem um servidor e uma fonte de energia próprios, independentes do resto da nave.
- Maxwell Saint, TK Bellows e Sunny Domita são fortemente inspirados em William Shatner, Gene Roddenberry e Lucille Ball. Já Lee Woods, “a doutora”, é mais genericamente inspirada em DeForest Kelley (que costumava ser chamado de Dee, muito parecido com Lee, e com um nome ligado a árvores – Forest/Woods). Em dado momento, ela inverte o clássico bordão: “Sou uma atriz, não um médico.” Já Adelaide Shaw, a primeira oficial, é inspirada em Majel Barrett, que fez a Número Um no primeiro piloto de Star Trek e acabaria se casando com Gene Roddenberry.
- Nos “erros de gravação” da sequência final de créditos, Maxwell Saint tenta fazer a “manobra Riker” para se sentar na cadeira do capitão, mas acaba quebrando-a. Em outra tomada, ele tenta reatribuir uma fala a seu personagem, ecoando a atitude de William Shatner nos bastidores da Série Clássica.
- Adelaide Shaw permitiu que Jess Bush expusesse seu sotaque australiano, enquanto Amelia Moon levou Christina Chong a fazer um sotaque americano.
- Em uma das muitas referências hollywoodianas do episódio, La’An chama Joni Glass de “William Morris”, famoso agente de estrelas como Charlie Chaplin, fundador da William Morris Agency.
- Ruby Red (vermelho rubi) era uma cor real de batons da Max Factor, usada por estrelas como Marilyn Monroe e Elizabeth Taylor.
- Embora a trama de mistério lembre muito os romances de Agatha Christie, os trajes da personagem Amelia Moon parecem inspirados na protagonista de games Carmen Sandiego.
- Maxwell Saint se refere ao namorado de Adelaide Shaw como Mick Bowie, combinando os nomes de dois ícones do rock dos anos 1960, Mick Jagger e David Bowie.
- O episódio traz a primeira menção ao lendário apresentador Johnny Carson em Star Trek, e o Perino’s foi um restaurante real em Los Angeles, famoso por reunir estrelas de cinema.
- Adelaide Shaw disse que teve o papel principal na peça Hedda Gabler em West End, na esteira de muitas atrizes famosas, dentre elas Maggie Smith.
Spock cita Arthur Conan Doyle como seu ancestral, ecoando sugestão similar em Jornada nas Estrelas VI: A Terra Desconhecida.
Ficha Técnica
Escrito por Dana Horgan & Kathryn Lyn
Dirigido por Jonathan Frakes
Exibido em 31 de julho de 2025
Título em português: “Aventura Espacial”
Elenco
Anson Mount como Christopher Pike
(+ TK Bellows)
Ethan Peck como Spock
Jess Bush como Adelaide Shaw
Christina Chong como La’An Noonien-Singh
Celia Rose Gooding como Nyota Uhura
(+ Joni Gloss)
Melissa Navia como Erica Ortegas
(+ Lee Woods)
Babs Olusanmokun como Joseph M’Benga
(+ Anthony MacBeau)
Martin Quinn como Montgomery Scott
Rebecca Romijn como Una Chin-Riley
(+ Sunny Lupino)
Elenco convidado
Paul Wesley como Maxwell Saint
Chris Myers como Dana Gamble
Rong Fu como Jenna Mitchell
Kira Guloien como agoniano
TB ao Vivo
Em Breve
Enquete
Edição de Maria Lucia Rácz
Episódio anterior | Próximo episódio
Descubra mais sobre Trek Brasilis
Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.