TB conversa com Mike McMahan

Mike McMahan, o criador e showrunner de Lower Decks, não tem ideia de quantas temporadas a série terá. Mas de uma coisa ele sabe: tudo que ocorrer, do começo ao fim, virá antes dos eventos cataclísmicos que foram apresentados em Star Trek: Picard e mudaram a Frota Estelar radicalmente. Essa foi uma das revelações que ele fez em entrevista ao Trek Brasilis, motivada pela estreia do programa no Brasil, pelo serviço de streaming Paramount+, no dia 15 de setembro (apenas a primeira temporada; o segundo ano ainda não tem data de exibição por aqui).

“Estamos tomando cuidado, porque você está falando não dos eventos de Picard, mas eventos que levam à série Picard que são por volta de 2384, 2385. Essa é uma grande data que muda a Frota Estelar, certo? Então, nossa série tem que existir entre 2381 e 2385, antes desse evento”, disse o produtor-escritor ao TB. “O truque de Lower Decks é que essas coisas parecem que acontecem, cada episódio parece acontecer com intervalo de alguns meses. Mas na verdade é com intervalo de alguns dias. Se você quer se encaixar exato no calendário de Star Trek, tudo em Lower Decks… É uma vida agitada na Cerritos!”

McMahan conversou com diversos veículos de imprensa da América Latina em uma coletiva via Zoom, onde abordou diversos assuntos da série e explorou a possibilidade de uma futura versão em live-action de Lower Decks.

“Você sabe, adoro o elenco, são tão engraçados. E são grandes intérpretes ao vivo também, então acho que daria pra fazer, talvez não tão rápido quanto Lower Decks“, diz McMahan. “A série te atinge com uma coisa, depois outra coisa, e outra, e nunca dá trégua. Se fizéssemos em live-action, eu espalharia as coisas por 40 minutos, colocaria espaço para respirar e teria provavelmente uma versão mais engraçadinha, mais curiosa, de Star Trek do que uma Star Trek séria. Então, seria um meio-termo, entre DS9 ou TNG e Lower Decks.”

O papo durou ao todo cerca de 40 minutos. Confira a seguir a conversa com o simpatissíssimo e engraçado criador de Lower Decks.

 

Em primeiro lugar, por que fazer uma comédia de Star Trek?

Mike McMahan: Tem duas respostas rápidas pra isso: a primeira é que sou um cara da comédia, então o único jeito de me infiltrar e fazer Star Trek seria fazer de um jeito que falasse comigo, entende? Quando se ama Star Trek e se ama comédia, é preciso arriscar essa combinação. A outra resposta é que sempre existiu comédia em Star Trek. Na Série Clássica, em A Nova Geração, Deep Space Nine, sempre houve não só piadas e tramas engraçadas, mas também personagens engraçados. Worf é intrinsecamente interessante e trágico, mas também fundamentalmente engraçado. Assim como o Quark em DS9, o Doutor em Voyager. Sempre existiram essas figuras engraçadas, e eu só aumento o volume desse aspecto de Star Trek, e deixo o restante ainda lá, mas celebrando essa parte em particular.

Você disse que aumentou o volume desse tipo de comédia. Acha que é possível ter esse tipo de série, sobre Star Trek, o mesmo conceito, mas live-action? E você gostaria de fazê-la?

Claro. Sabe, sempre dizemos em Lower Decks que é preciso o equilíbrio. Precisa ser engraçado, mas também precisa ser Star Trek, e algo que atrapalha a sensação de Star Trek é a característica animada. É por isso que temos designs lindos para as naves, cenários de fundo lindos. As naves em Lower Decks, se você as colocar num fundo menos desenhado, parece que poderiam estar numa série live-action. E você sabe, adoro o elenco, são tão engraçados. E são grandes intérpretes ao vivo também, então acho que daria pra fazer, talvez não tão rápido quanto Lower Decks. A série te atinge com uma coisa, depois outra coisa, e outra, e nunca dá trégua. Se fizéssemos em live-action, eu espalharia as coisas por 40 minutos, colocaria espaço para respirar e teria provavelmente uma versão mais engraçadinha, mais curiosa, de Star Trek do que uma Star Trek séria. Então, seria um meio-termo, entre DS9 ou TNG e Lower Decks.

Como você encontra o equilíbrio certo entre honrar o legado de Star Trek e a comédia?

Eu trabalhei em muitas séries animadas, e logo antes de Lower Decks trabalhei em Rick & Morty por um bom tempo. E Rick & Morty tem um tipo de estrutura de história semelhante a Star Trek no geral, onde a cada semana os personagens precisam lidar com um problema sci-fi e no fim do episódio aprendem uma lição e mudam. Eu adoro Star Trek. Se eu fosse fazer uma série de Star Trek, não poderia não ser Star Trek. Essa seria minha única chance de fazer uma ótima série de Star Trek. E com a animação moderna… Cresci com Os Simpsons, não poderia se fazer algo assim antes, não se poderia fazer algo tão específico. Mas já que Lower Decks seria para o streaming, sei que o público teria todos os episódios ao apertar de um botão. Então a graça de Lower Decks é fazer uma comédia e nos desafiarmos a fazer uma série de Star Trek ao mesmo tempo. Se partir muito para a comédia, os roteiristas e os artistas, nós todos conversamos e pensamos em como fazer voltar a ser, o que é surpreendente para o público, uma ótima Star Trek que também é sempre uma comédia. Essas duas forças estão nos roteiros, falamos com os atores sobre isso, com os diretores de animação. Todos sabem, na equipe da série, que o equilíbrio, a surpresa da série, precisa ser que ela é uma ótima Star Trek. O público sabe que está esperando uma comédia, mas se fizermos o trabalho direito, eles vão rir e ao final do episódio dirão: “Cara, foi um ótimo episódio de Star Trek também”. É pra isso que trabalhamos.

Que influência outras sitcoms sci-fi animadas tiveram na criação de Lower Decks? Porque sinto um pouco do espírito de séries como Futurama e The Orville.

Fui muito influenciado especificamente por Futurama e Galaxy Quest. Essas foram as maiores pra mim. E passei 6 ou 7 anos trabalhando em Rick & Morty, então foi um encaixe perfeito pra mim. Amei ficção científica e comédia a minha vida toda. E foi no Rick & Morty que ganhei experiência e comecei a aprender a expressar isso no formato animado de 20 minutos. Mas me lembro de quando Futurama começou, era muito confortável. Eu adoro a série, mas quando um episódio de Futurama começa, sinto minha pressão baixar, sinto que é minha zona de conforto, e eu adoro. E me lembro de ver Galaxy Quest no cinema, sem saber de nada a respeito, e dizer: “Esse é o meu filme favorito de todos os tempos”. É o filme de Star Trek perfeito, e a comédia perfeita. Acho que Galaxy Quest… Aquele equilíbrio é o que tento alcançar, porque aquela magia, eu acho, Galaxy Quest fez de um jeito que ninguém fez antes. Amo SOS: Tem um Louco Solto no Espaço, mas é comédia, não finge ser Star Wars. The Orville, acho bonito. Não assisti a muita coisa. Em parte fiquei com ciúme: “Seth McFarland, esse é meu sonho!” Ainda não consegui ver tudo, comecei a produzir Lower Decks logo depois e, do que vi, achei incrível. Mas minhas influências de verdade são Futurama, Galaxy Quest e uma cacetada de Star Trek.

Como você descobriu a fórmula para fazer uma série atraente não só para velhos trekkers, mas para novas gerações também? Porque é muito atraente para novos espectadores.

Eu não descobri, foi o Gene Roddenberry quando criou Star Trek. Porque a fórmula… Nem é uma fórmula, acho que é um formato. É um jeito mais generoso de dizer. O entendimento dele sobre o que você quer ver, com uma equipe inspiradora, a tripulação de uma nave de Star Trek, e os tipos de histórias que se conta e como eles interagem, é tão forte para TV, resulta numa televisão tão boa que é por isso que se pode ter A Nova Geração, filmes, Deep Space Nine e Voyager e assim por diante. Então… Sabe, o que estou dando a novos espectadores e a trekkies que acho que procuram por algo familiar, é que há certas coisas que Gene criou, e também se viu nos anos 1990 e em Discovery e Picard, é que podemos ver pessoas na Frota Estelar trabalhando juntas, se dando bem, se dedicando à ciência… Você não precisa saber de coisas científicas pra ver Star Trek, mas consegue gostar de assistir e de estar num mundo com pessoas que amam fundamentalmente a ciência, sem questionar. E estão todas no espaço, são éticas, possuem moral e apoiam umas às outras. No seu núcleo, para mim, Star Trek é sobre amizades, entende? Há uma razão para, em A Ira de Khan – hora do spoiler! – quando o Spock está morrendo dentro do núcleo de dobra… Aquele é um dos momentos mais bonitos em toda a Star Trek, porque é sobre o amor de dois amigos, sobre aquela perda. Para a minha sorte, comédia também pode abordar amizades e respeito mútuo. Então, Star Trek em geral é sobre explorar a galáxia e descobrir o novo, mas também é sobre aprender sobre a humanidade, certo? Esse é o subtexto, sempre. Lower Decks é assim também, mas é sobre aprender sobre si mesmo. É sobre pessoas que não são parte da tripulação da ponte, pessoas que ainda não se conhecem completamente, e sobre pessoas que não são oficiais da Frota perfeitos, como vimos. Não existe um Geordi… O Geordi é perfeito, entende? Perfeito no coração, nas habilidades, é um cara perfeito. Adoro o Geordi La Forge. As pessoas de Lower Decks querem ser o Geordi La Forge, mas não sabem como chegar lá. E acho que, eu, na minha carreira, e as pessoas que conheço, provavelmente todos temos coisas que queremos fazer, coisas a que aspiramos, que queremos ser, e tentamos o tempo todo alcançá-las, mas nem sempre sabemos o caminho exato pra chegar lá. E essa é a exploração de Lower Decks.

É comédia, e comédia depende da escrita e da reescrita… E esse é um grande desafio a superar. Como você consegue fazer as piadas com referências às outras séries? Como você as inclui e as faz parecer naturais e não forçadas?

Primeiro, adorei seu PS5 ao fundo. Entendi, você comprou um, isso é incrível. Sabe, cresci em Chicago, e lá existe um teatro de comédia ao vivo chamado Second City. Muitos comediantes famosos vieram de lá. Cresci a uns 5 minutos de distância do Second City. Nunca me apresentei no palco lá, mas fui a todos os shows e durante a faculdade, trabalhei no Second City limpando o bar, mudando garrafas de lugar, arrumando o palco. Era parte da família Second City. E o lance do Second City era, às vezes os esquetes de comédia agradavam a todo mundo. Era uma coisa básica e engraçada que todo mundo entendia. Algo estilo Saturday Night Live. Mas em outras vezes, porque o Second City era em Chicago e tinha muita gente da cidade lá, as piadas eram específicas sobre eventos e locais de Chicago. Lower Decks é meio assim. A nossa vizinhança, nossa cidade, que amamos e com a qual zoamos, ao invés de ser Chicago, é a comunidade de Star Trek. Então, se você chega a Lower Decks e viu todas as Star Treks anteriores, você é parte da família. Vai entender nossas piadas, nosso humor interno. E se você está chegando pela primeira vez, ainda tentamos tornar engraçado pra você, dá pra perceber que coisas engraçadas estão rolando, perceber a cadência das piadas e tudo o mais. E porque ela é para pessoas que se interessam em ver Star Trek, é a razão pela qual posso dizer: “Ei, estamos fazendo isso acessível, mas também uma comédia. Estamos fazendo graça e celebrando a nossa vizinhança, a vizinhança que Gene Roddenberry criou.” Vejo muita gente dizendo: “Ah, talvez você não entenda isso se gosta de Star Trek.” Mas são pessoas que viram muita Star Trek, porque também vejo muita gente que fala comigo e que assiste à série e que diz que é ótimo para novos espectadores, porque os personagens ainda são adoráveis e engraçados. Entende? Mariner e Boimler são engraçados mesmo que você não saiba quem é Khan. Se você viu Star Trek antes e depois Lower Decks, conhece tudo. Sabe quem são os romulanos, quem são os klingons. Se você nunca viu Star Trek, ainda entende. Diz: “Ah, aquele é um alienígena irritado, com uma espada.” Não precisa saber muito além disso, porque esses são arquétipos sci-fi clássicos, mitológicos e bem definidos, que existem há mais de 50 anos. Então, é engraçado. Muita gente me diz, “se você não conhece Star Trek, nunca vai entender essa série”, e vejo igualmente pessoas dizendo, “uau, nunca vi Star Trek antes, mas isso é hilariante, vou assistir a mais Star Trek depois”.

Você acha que essa experiência de trabalhar no Second City te inspirou a querer escrever sobre os subalternos, as pessoas que não são os capitães, não estão no palco?

Com certeza é uma combinação disso. Tive vários empregos e entreguei café pra muita gente. Mas sempre que fazia isso, era num ambiente no qual eu aspirava trabalhar numa melhor posição. Enquanto trabalhava no bar do Second City, pensava: “Um dia quero escrever pro Second City“, mas mesmo quando ainda não estava lá e escrevia em casa, queria estar perto daquelas pessoas. Sabe, em muitos empregos, você paga seus pecados na vida. Mas também aprende muito e descobre as pessoas com quem quer trabalhar, quem você quer ser depois. Quando você trabalha pra quem não ama, não quer ser como essas pessoas quando se tornar o chefe. Com certeza foi uma combinação disso que você disse e também do fato de Star Trek sempre ter transmitido uma forte sensação de que a nave é grande, certo? A Enterprise nunca parece pequena, especialmente nos anos 1990, em TNG. Sempre temos esses momentos na barbearia, no bar panorâmico, em aulas de pintura… Você sente que os personagens principais são parte deste mundo maior e mais vibrante, e você só vê um pouquinho dele com a tripulação da ponte. Minha parte favorita de Star Trek eram esses pequenos momentos na barbearia, ou quando Geordi e Data estão relaxando ou falando de poema, ou qualquer coisa. Eu quase gosto mais desses momentos do que quando aparece uma grande cabeça verde, ou o Q. Quando a história começa, digo: “Não, quero mais dessa parte relaxada!” Porque sou um cara de comédia, e Lower Decks é tipo: “Nos dê mais da parte relaxada.” Essa é parte de Star Trek, como disse antes, só que aumentada. Então, era o meu amor pelos momentos pequenos, o começo dos episódios, a trama “B”, as histórias emotivas que adicionavam cor e textura aos personagens, misturado com… Tiro muitas histórias de Lower Decks do meu trabalho como produtor-assistente ou assistente, sabe, esses trabalhos menores que fiz no começo da minha carreira. Mas acho que esses trabalhos são importantes. Não quero dizer que as pessoas trabalhando neles não fazem coisas importantes, porque eu os fiz. Mas digo pra todo mundo, se você está fazendo um trabalho assim, se você acha que é um subalterno e não ama o que faz, prometo que existe um trabalho ainda mais abaixo que o seu. E dentre todos que parecem com os da Frota Estelar, você pode encontrar seu lugar, mesmo se não for um trabalho incrível, só de estar lá… Pra mim, era na TV. Eu faria tudo pra trabalhar na TV. Quando comecei, eu abastecia o fax. Acho que isso não é mais tão comum. Sabe? Acho que comemorar ser um oficial subalterno, ou estar na parte baixa da sua carreira, pra mim é muito importante, e também bem divertido. No ponto que estou como showrunner agora, queria poder voltar àquele tempo e sair com meus amigos e me divertir.

Já sabemos que há convidados na temporada 1 e na 2. Você tem uma lista de desejos de personagens do universo Star Trek que gostaria de ver no futuro?

Sim, mas sou meio guloso, por mim iria atrás de todo mundo, sabe? Num certo ponto, tenho que dizer: “Estou fazendo meu trabalho ou sendo um fã?” Entende? Precisa fazer sentido para a série. Mas, dito isto, eu adoraria trabalhar com Robert Picardo, acho que ele é tão… Ele é genial, adoro o trabalho dele em Voyager, adoro o Twitter dele, é muito engraçado. Por agora, infelizmente, ainda não o temos na série, mas ele é o primeiro em que eu penso porque é muito engraçado e nossa série é engraçada e ele tem tudo a ver com Star Trek, mas… É complicado reduzir essa lista porque há muitas tripulações diferentes em Star Trek. E a propósito, sempre que tivemos atores-legado na temporada 1, trabalhar com eles foi surreal. É melhor do que conhecê-los, pegar autógrafo e sair com eles, ou jantar com eles, porque você está fazendo Star Trek com eles. E quantos fãs têm essa oportunidade? É algo muito raro. Às vezes é difícil pra mim manter a compostura, mas ao mesmo tempo eles são profissionais tão bons que tê-los no programa só melhora a série. Então, de novo, é o equilíbrio entre “quero todo mundo!” e “espera aí, como usar essas pessoas de modo respeitoso e dar ao público algo que não viram antes, e que pareça inesperado, mas que vão gostar”, e partir daí. Mas, no que dependesse de mim, todo mundo voltaria.

Lower Decks ainda não está disponível no Brasil, então a ideia de comédia no universo Star Trek é nova pra nós aqui. Mas outras séries em que você trabalhou são populares aqui, como Rick & Morty e até South Park. Então, o que podemos esperar dessas séries em Lower Decks?

Nós temos a velocidade, as piadas, vai ter a textura de uma comédia animada adulta moderna. Então, acho que, ao adentrar a série, se você acha que vai ter o ritmo de Star Trek, não vai ser assim. O ritmo de Star Trek: Lower Decks é como se pegássemos Star Trek e jogássemos escada abaixo. Está tudo lá, mas está caindo e batendo nos degraus e não consegue parar até chegar ao fim. Acho que, para mim, a graça de comédias animadas modernas como essas que citou, mas também outras, como BoJack Horseman ou Bob’s Burgers, é que te dá uma sensação de não saber o que virá em seguida. Pode variar do engraçado para o sério e emotivo, porque os roteiristas conseguem flexibilizar de um jeito que não se conseguia fazer em animação como quando Os Simpsons surgiram, ou Family Guy. Mas ao mesmo tempo eu diria… Recebo muitas mensagens do Brasil no Twitter, dizendo que estão ansiosos para a estreia e estou feliz que vocês finalmente verão. É só porque tem muita gente no Brasil e precisam parar de tuitar pra mim… [risos]. Mas acho que, mais do que falar sobre como parece familiar em relação a South Park ou Rick & Morty, é melhor falar que vai ser diferente de South Park e Rick & Morty. Porque a base de Lower Decks é o otimismo, é a generosidade de espírito. Não tem uma característica sombria, que alguns chamam de niilista. Acho que não tem nada de cinismo em Lower Decks, então quando você a assistir, é como ser atingido pela luz do sol. Vai ser uma comédia adulta animada, que também é assustadoramente positiva, amigável e inclusiva. Essa é a principal diferença. Porque eu adoro Rick & Morty e South Park, mas são sátiras incisivas, que vão na parte sombria das coisas, e Lower Decks não faz isso. Ela é como: “Ei, aqui estão seus amigos! Eles vão passar por umas maluquices, mas não se preocupe, eles apoiam uns aos outros.” De um jeito bem Star Trek.

Primeiro, desculpe sobre todos aqueles tuítes sobre quando a série vai estrear no Brasil… E gostaria de dizer que eu trocaria feliz o PS5 dele pelo seu capacete do Spock. Esse capacete é mais legal!

Não é incrível? [Mike liga a luz do capacete em sua mesa por um momento.]

Sobre as diferenças entre o que um desenho tradicional faz e o que Lower Decks faz… O padrão pra maioria dos desenhos é que eles são meio atemporais, então faz 30 anos que o Bart Simpson tem 11 anos de idade e Rick e Morty não envelhecem… E claro, em Star Trek, a coisa é bem diferente. Há quase uma obsessão com linha do tempo e quando tudo ocorre e tudo o mais… Como você equilibra isso em Lower Decks? Cada temporada é um ano, como em TNG? É atemporal? Eles envelhecem? Como você aborda isso?

Pensamos nisso o tempo todo. Você ainda quer usar o que séries animadas fazem, o que Os Simpsons faz, mas também o que os quadrinhos Marvel ou DC fazem, nos quais você sente o progresso das coisas, mas sem mudar nada tão drasticamente a ponto de um novo público não entender o que estão lendo ou o que estão vendo. Você quer uma construção lenta ao invés de uma drástica. Outro modo de dizer seria uma serialização light. Existem elementos de personagem e crescimentos serializados de uma temporada pra outra, mas os princípios básicos da série sempre vão parecer familiares. É o que Star Trek sempre fez. É o que boas séries fazem. Você quer ser familiar o bastante para que, no começo do episódio, você sinta que sabe o que vai rolar, mas, quando o enredo progride, você é surpreendido e se encanta com coisas que não previu. Pra mim, acho que para responder melhor à sua pergunta, vejo Lower Decks como uma história de longo prazo sobre um grupo de alfereses que começaram num ponto e, ao final da série, chegaram a outro ponto. Vemos isso… DS9 foi muito serializada. Em Voyager, obviamente, eles estão no Quadrante Delta e – spoiler – eles acabam voltando para a Terra. Pra mim, em Lower Decks, a progressão que você assiste não é tanto sobre uma narrativa com trama acontecendo, mas sim sobre ver crescimento de personagens acontecendo. Então, mesmo na primeira temporada, os personagens começam num ponto e acabam num diferente ao final da temporada. A cada temporada de Lower Decks, porque estou escrevendo o finale da temporada 3, a graça é, como manter a sensação de Star Trek, como deixar os personagens crescerem e não perder o sentimento de subalternos. Então… Sabe, é muito trabalho, muito planejamento, mas você quer que o público embarque na jornada com os personagens, mesmo que não seja uma jornada física, só uma jornada emocional.

Uma sequência rápida. Você vai esbarrar em Star Trek: Picard se continuar, em alguns anos. Você vai comprimir o tempo para ficar atrás de Picard, no final?

Estamos tomando cuidado, porque você está falando não dos eventos de Picard, mas eventos que levam à série Picard que são por volta de 2384, 2385. Essa é uma grande data que muda a Frota Estelar, certo? Então, nossa série tem que existir entre 2381 e 2385 antes desse evento. Então, a grande mentira, o truque de Lower Decks é que essas coisas parece que acontecem, cada episódio parece acontecer com intervalo de alguns meses. Mas na verdade é com intervalo de alguns dias. Se você quer se encaixar exato no calendário de Star Trek, tudo em Lower Decks… É uma vida agitada na Cerritos! [risos]. E zoamos com isso na série, um personagem diz: “Parece que um novo mistério científico acontece a cada dia por aqui.” Então, no fim do dia, quando se checa as datas estelares e tudo o mais, estamos sendo precisos, tomando cuidado. E tenho meus truques pra incluir tudo lá, mas sim, toda a história de Lower Decks vai acontecer entre 2381 e logo antes dos eventos que iniciam Picard.

Qual a importância das plataformas de streaming para você e para a série?

A série não existiria sem os streamings. Lower Decks não é algo que, penso eu, poderia ter sido feito para adultos, mesmo há 10 anos. O que vemos hoje é, a maravilha das plataformas de streaming para roteiristas e criadores, é que não apenas o público vai poder ver todos os episódios… Quando eu era criança e assistia a Star Trek, seria um episódio aleatório de uma temporada aleatória, e eu via e ficava feliz, mas foi só recentemente que se teve a chance de ver uma série do início ao fim. Me lembro de quando DVDs apareceram, eu dizia: “Caramba, um episódio inédito de uma coisa que eu amo!” Agora, você não precisa escrever uma série pensando que alguém chegará no meio da temporada e não vai ver tudo. Você pode fazer esse crescimento lento dos personagens que só pode fazer porque sabe que, se alguém investiu nesses personagens, a série inteira estará disponível para ser vista. Então, não vão perder nada. Mesmo em Rick & Morty, cada episódio tinha que ser autocontido. Quando a série cresceu, passamos a nos preocupar menos com isso, porque sabíamos que as pessoas estavam assistindo a todos os episódios quando saíam. Mas em Lower Decks o pensamento é: “Olha, estou escrevendo a série e os atores estão interpretando e estamos desenhando, e presumimos que você está assistindo tudo com a gente.” E também só tem 20 episódios até agora, pras duas primeiras temporadas, então não consome muito tempo das pessoas. Mas é isso que o streaming nos possibilita, um superpoder incrível. E também outras coisas menores… Se o grande poder do Superman é a sua superforça, e ainda tem outros poderes extras, como congelar as coisas com o sopro, lançar laser pelos olhos e coisas assim, nós também temos. Nossos episódios podem ser um pouco mais longos. Não precisamos incluir intervalos comerciais, é o tempo exato. Então, na primeira temporada, o nono episódio é tremendo, e o fizemos mais longo. Numa plataforma tradicional, não poderíamos lançar mão desses superpoderes. Sabe, Star Trek foi feita pra essas grandes audiências e boa parte da cadência e sensação de Star Trek tem a ver com a sua natureza televisionada. Tentamos injetar muito disso em Lower Decks, enquanto ao mesmo tempo tentamos usar coisas modernas de Star Trek, como o que Discovery consegue fazer, Picard consegue fazer, só que fazemos em forma de animação. Então, é muito divertido escrever para streaming.

Existe muita reverência pela Star Trek original. Onde vocês colocam o limite criativo em relação às referências?

Pra mim, tudo se resume ao que me parece Star Trek, certo? De vez em quando apareceu um episódio que não parecia Star Trek pra mim. Pra mim não há episódio “inassistível” de Star Trek, porque estou lá pra ficar com meus amigos, pra ficar com Data e Geordi, Picard e Worf, Sisko e Bashir. Então, mesmo num episódio mais fraco, penso: “Enquanto tiver gente em uniformes de Frota fazendo suas coisas, legal.” Mas, pra mim, existem aspectos de construção de mundo que não me agradam tanto. Então, sendo bem geral, teve um episódio de TNG que falava sobre como viajar em dobra era um desastre ambiental [“Force of Nature”, da sétima temporada]. E eu dizia: “Isso é difícil de escrever, porque não dá pra entrar em dobra.” Então digo: “Nããão vamos falar muito desse aí.” Mas, por outro lado, às vezes isso é um presente pra mim, como no caso da espécie órion, os personagens verdes. Na Série Clássica, eram só dançarinas de dança do ventre, mulheres alienígenas que rebolavam na tela. E daí as vimos brevemente nas outras séries, especialmente em Enterprise, onde é estabelecido que elas têm esses feromônios inebriantes, e pra mim… A graça de explorar espécies alienígenas pré-existentes em Star Trek agora é dizer: “Ok, nós vimos o monoplaneta, a versão monocultural disso, onde todos os klingons são assim, todos os romulanos são assim, todos os órions são assim”. A diversão pra mim, a razão da nossa personagem Tendi ser uma órion é, que esses planetas não serão monoculturais no fim das contas. Tipo, quando a Enterprise topa com os kingons, só topa com guerreiros que estão numa nave, ou só topam com o sindicato órion, nas naves deles. Esses planetas são vastos. Que outros personagens podemos achar nesses planetas? Já exploramos muito a Frota Estelar, numa estação ou numa nave perdida. Nas naves capitânias. Mas, pra mim, Star Trek é tão ampla que eu poderia fazer um episódio inteiro em Órion e explorar como é o norte de Órion, como é o hemisfério ocidental, o quão diferentes os órions são, e só raspar a superfície disso na série. Algo assim, acho que as Star Treks anteriores evitariam, mas eu digo: “Ei, vamos olhar isso!” Vamos voltar a personagens que ninguém nunca pediu pra rever, como os pakleds ou os exocomps. Vamos pegar coisas que tecnicamente não deveriam funcionar e achar jeitos de fazê-las funcionar porque é uma comédia, e de um jeito que ninguém nunca achou que veríamos de novo.

Vamos falar do seu começo na indústria. Lembra-se da primeira vez em que pensou numa carreira roteirizando e produzindo animações?

Sim. Estava em casa pensando no que deixaria os meus pais mais aborrecidos, e me veio: “Vou me tornar roteirista de TV” [risos]. Não, no colegial, eu era louco por Stephen King, adorava ele. E publicaram o novo livro dele. Cheguei em casa e não era um livro, era o roteiro da série de TV A Tempestade do Século. Abri, era criança e disse: “Mas o que é isso?”. Mas era o Stephen King e eu era maluco por isso, e me lembro de lê-lo e pensar: “Meu Deus, é um roteiro!” Nunca tinha lido um roteiro de TV até então. E me fez perguntar: “Consigo fazer isso?” E começou meu caminho lá nos anos 1990. Quando me mudei pra Los Angeles, queria fazer filmes engraçados, mas aceitei qualquer trabalho que aparecia e acabei trabalhando com animação. E geralmente, se você trabalha na área, ajuda saber desenhar. Não sei desenhar e minha letra é feia, mas amava programas animados. Trabalhei em Casa Animada, em South Park, trabalhei na Fox TV Animation com todas aquelas coisas, desenvolvendo coisas novas. E nesse tempo todo, estava sempre lendo, lendo. Tudo que aparecia. Roteiros das séries existentes, novas ideias, coisas que nunca chegaram a lugar algum, e me apaixonei pelo formato, por esse jeito de escrever TV no qual você pode fazer a piada que quiser, porque a animação a faria funcionar. Então, acho que essa é uma resposta mais longa do que você queria, mas: A Tempestade do Século de Stephen King e levar café pras pessoas nas séries animadas. Foi um golpe duplo.

Qual personagem pra você é o mais legal de se escrever?

É difícil, porque… Os atores de voz na série são tão divertidos, e sei que vocês terão seus dubladores, ouvi as dublagens internacionais e elas incorporaram o espírito da série. São personagens diferentes a cada dia. Eu adoro escrever a capitão,  porque ela é tipo… Sempre sonhei em escrever um capitão da Frota, sabe? Ela não é tão boa quanto o Picard, então é… Ela ainda não chegou lá, são situações diferentes. Adoro escrever o segundo em comando, Jack Ransom, como uma versão exacerbada do Riker, mas temos o Riker na série, então amo a versão exacerbada dele também. A alferes Beckett Mariner é uma personagem que acho que já vimos em Star Trek, tons dela apareceram antes. Ela é meio como Kirk, meio como a alferes Ro da TNG. Só um pouco mais piadista do que esses personagens, mas representa de verdade a Frota. Escrever falas para a Beckett Mariner é o máximo da diversão para um trekker que curte comédia. Então, acho que no topo está a Beckett Mariner, mas todos são legais. A Tendi é tão doce. Rutherford reúne todas as coisas técnicas que eu sempre quis escrever, as coisas técnicas da Frota Estelar. E Shaxs, o nosso análogo do Worf, nosso bajoriano forte e psicótico que só quer explodir as coisas. Então, é difícil escolher, mas Beckett Mariner é provavelmente a minha favorita.

Tradução de Ivanildo Pereira