Em defesa de Jornada nas Estrelas V

Hehe, é engraçado. Você tem que curtir a ironia disso. Eu, que obtive os meus 15 minutos (ou foram segundos?) de fama por aqui ao criticar a atual decadência criativa de Jornada nas Estrelas nas telas de TV ou cinema sob o comando de Rick Berman e Brannon Braga, venho agora defender o odiado filme “Jornada nas Estrelas V: A Última Fronteira” (“Star Trek V: The Final Frontier“), considerado por 9 entre 10 trekkies como o pior filme da história do franchise… ou ainda, o pior filme de todos os tempos da história do cinema.

Como alguém como eu, que criticou até cansar a fraca Voyager e a péssima Enterprise, pode gostar de um filme como esse? Como posso eu, a mesma pessoa que condena aos quatro ventos a visão de Jornada dos “autores” Berman e Braga, posso defender a visão de Jornada do “autor” Bill Shatner? Seria sarcasmo da minha parte? Uma piada? Ou finalmente eu fiquei louquinho da silva, após ler demais os livros do Shatner? Seria eu, afinal de contas… um… argh… trekkie?

Bom, para começar, devo dizer que eu sempre gostei de William Shatner e de sua atuação como James Tiberius Kirk. Mesmo quando ele esteve em sua pior fase de canastrão nos péssimos episódios do terceiro ano da Série Clássica, ou quando ele apareceu em cadeia nacional de televisão no programa “Saturday Night Live” dizendo aos trekkies Get a Life!“. Diabo, eu curtia Shatner até na série “Carro Comando”! Ele sempre me pareceu um cara legal, bem-humorado e criativo, apesar do que os George Takeis e Jimmy Doohans da vida falam dele. Bobagem, deve ser inveja. Para mim, Shatner, assim como Leonard Nimoy, Harve Bennett e Gene Coon, foi uma das grandes fontes de criatividade por trás das câmeras em Jornada nas Estrelas e tem o crédito de ter dado à série original muito de seu carisma, humor e qualidade.

Sim, é verdade que Shatner já foi acusado por seus colegas de elenco, pelos fãs, pela imprensa e até pelo falecido Gene Roddenberry de ser um egomaníaco arrogante, de ser um ator pobre e canastrão, de não escrever seus roteiros e livros e roubar as idéias e os créditos dos outros, etc. e tal. Mas por que estou lembrando disso tudo? Porque não é meu objetivo com essa coluna ignorar o que se fala de Shatner ou de seu roteiro e sua direção em “Jornada nas Estrelas V”.

Sim, Shatner pode ser um ator e diretor difícil de se lidar, pode ser um cara de personalidade forte. Sim, “Jornada V” tem uma produção capenga, efeitos especiais de quinta categoria (aí, seo Shatner, como a ILM fez falta!), uma direção de fotografia pastel e sem graça do veterano Andrew Lazlo (“Viagem Insólita“) e uma direção de arte pobre e feia (de novo, como a ILM fez falta).

O objetivo dessa coluna é dar às pessoas uma visão diferente do filme, mas sem negar os seus defeitos e erros, seja um poço de turbo elevador com 78 andares numa Enterprise-A que possui apenas 21 andares ou uma nave estelar que leva apenas poucas horas para atingir o distante centro da galáxia (Super-Trans-Dobra?). Tais erros e defeitos já renderam e ainda vão render inúmeras críticas e gozações, e não é o objetivo dessa coluna chover de novo nesse molhado. Vamos inovar e dar uma olhada nos bons pontos de “A Última Fronteira”, na companhia de alguém (eu) que está disposto a admitir, em público, que gosta do filme (ei, já que estou admitindo isso, vou dizer que também gosto muito de “Jornada nas Estrelas: O Filme” (“Star Trek: The Motion Picture“) e “Generations”, por isso podem me gozar à vontade).

Eu me lembro de quando vi “Jornada V” no cinema pela primeira vez, no dia da estréia, em setembro de 1989, num cinema de um shopping aqui de Belo Horizonte, junto com uma meia dúzia de amigos. Lembro-me de ter gostado do filme, e mesmo os péssimos efeitos especiais da Bran Ferren & Associates não me cegaram para o que o filme tinha de bom. Para começar, a excelente trilha sonora de Jerry Goldsmith é a primeira coisa que me vem a cabeça quando me lembro do filme. A música de “Jornada V”, para mim, é um dos pontos altos da carreira de Goldsmith (juntamente, é claro, com sua música para “O Filme”). Os temas que Goldsmith escreveu, como na escalada de Kirk em Yosemite ou na aproximação da nave auxiliar em Sha-Ka-Ree ou no aparecimento de “Deus” são… bem, se me permitem o trocadilho… divinos. Infelizmente, em suas mais recentes trilhas para Jornada (como em “Primeiro Contato” e “Insurreição”), Goldsmith nao repetiu o poder e a melodia de suas trilhas para Jornada I e V, talvez porque Rick Berman nao seja fã da boa música. (O CD da trilha sonora de Akiraprise é a pior música de elevador que eu já ouvi. Mas como a esperança é a última que morre, talvez Goldsmith faça uma trilha espetacular para “Nemesis”. Talvez.)

O outro ponto forte do filme é a maneira como Shatner retrata a amizade de James Kirk, Spock e Leonard ‘Bones’ McCoy. Seja cantando “Row Row Your Boat“, ou meditando sobre sua mortalidade, ou mesmo enfrentando seus medos e traumas, nunca antes a amizade dos três foi retratada de forma tão humana como em “Jornada V”. Shatner, grande amigo de Leonard Nimoy e DeForest Kelley na vida real, soube transpor essa amizade com perfeição para seus personagens. “Jornada V” não é um filme sobre “a Enterprise vai procurar Deus” ou “a Enterprise enfrenta os Klingons”, mas sim um filme sobre a amizade de três homens bem diferentes. Aí residem o charme e a magia do filme, não nos efeitos especiais, mas sim na dramaticidade e nas atuações de Shatner, Nimoy e Kelley. A cena em que Kirk, Spock e McCoy são forçados por Sybok a enfrentar seus medos e traumas é um dos momentos mais fortes e dramáticos que os três atores protagonizaram e permanece um dos meus momentos favoritos dos filmes de Jornada.

Apesar de Shatner dar bons momentos a Sulu, Chekov, Scotty e Uhura, é óbvio que ele considera o “grande trio” a real família de Jornada –o foco do roteiro é claramente em Kirk, Spock e McCoy. Ele vai fundo nos personagens e isso faz com que “Jornada V”, sem dúvida, seja sobre a aventura “humana” e os personagens. Já a Jornada atual, de Berman e Braga, é muito mais sobre anomalias, paradoxos e alienígenas bizarros.

Outro ponto forte do roteiro de Shatner e David Loughery é a nostalgia com que a Série Clássica é tratada. Kirk dizendo “tudo o que peço é uma nave… e uma estrela para me guiar” ou “eu sinto falta da minha velha cadeira” e a placa com a frase “audaciosamente indo onde nenhum homem jamais esteve” são pequenas e merecidas homenagens à série de TV onde tudo começou. E Kirk enfrentando um “falso deus” é um dos clichês clássicos de Jornada nas Estrelas: basta lembrar de Kirk enfrentando o “deus” Gary Mitchell no segundo piloto da série ou o “deus grego” Apolo em “Who Mourns for Adonais”. O filme também traz novos e importantes toques à mitologia de Jornada, como Kirk dizendo que “eu sempre soube que morreria sozinho” (ou seja, sem a companhia de Spock e McCoy –algo que foi explorado em “Generations” e nos livros de Shatner sobre o retorno do capitão Kirk) e a noção que o centro da galáxia também possui uma grande barreira, como a barreira existente no limiar da galáxia e descoberta pela Enterprise original no segundo piloto da série. É engraçado lembrar que, quando a Enterprise-D visita o centro da galáxia no episódio da Nova Geração “The Nth Degree”, Picard se vê face a face com uma raça poderosa que parece uma cabeça gigante com barba branca, muito similar ao “Deus” de Sha-Ka-Ree. Coincidência? Você decide.

Mais uma qualidade do filme na minha opinião é a presença do ator Lawrence Luckinbill como Sybok, o meio-irmão de Spock. Sybok nao é um vilão, mas um bom homem, um filósofo com um sonho de descobrir “novos mundos”. Luckinbill é um excelente ator e trouxe uma certa profundidade e paixão ao papel difícil do Vulcano emotivo e rebelde. Sybok é sem duvida um personagem mais interessante e tridimensional do que a Rainha Borg ou Rua’fo, que são apenas “vilões da semana”.

Bem, se você não vai com a cara de Shatner ou considera “Jornada V” um lixo, não serão as minhas palavras e opinião aqui mostradas que irão mudar a sua. De qualquer forma, eu recomendo que você assista ao filme de novo e dê outra chance à ovelha negra dos filmes de Jornada. O final, devido à falta de dinheiro e aos efeitos péssimos, saiu ruim que dói, é verdade. Mas não deixe que isso lhe estrague o apetite. Eu mesmo, durante muito tempo, defendi que “Jornada V” merecia uma “Edição do Diretor”, na qual novos e melhores efeitos especiais fossem criados para o filme e Shatner pudesse restaurar cenas como a do final, em que Kirk enfrenta o Demônio (sim, Satanás em pessoa!) e sua legião de gárgulas de pedra –cenas que foram cortadas quando os efeitos de terceira não convenceram Shatner e o produtor Harve Bennett.

Já escrevi diversos artigos sobre isso no TrekWeb, e agora, com o sucesso da versão do diretor de “Jornada nas Estrelas: O Filme” e “Jornada nas Estrelas II: A Ira de Khan”, talvez Shatner possa dar a “Jornada V” os efeitos especiais, a edição e a produção detalhada que o filme merece. De todo modo, obrigado, Bill, pelo “melhor dos tempos” e pelo “pior dos tempos”.

P.S.: Se você se interessar em pesquisar a verdadeira história dos bastidores do filme e a verdade sobre as batalhas e dificuldades que Shatner enfrentou para trazer sua história às telas, assim como sua paixão pelo roteiro, existem dois sensacionais livros cuja leitura é obrigatória não só para trekkies, mas para os fãs de cinema em geral. O primeiro é “Star Trek Movie Memories“, escrito pelo próprio Shatner e pelo escritor Chris Kreski e disponível em português com o título “Jornada nas Estrelas – Memórias dos Filmes”. O segundo é o sensacional livro “Captain’s Log – The Making of Star Trek V as Told by William Shatner“, escrito pela filha de Shatner, a escritora Lisabeth Shatner. Publicado em 1989 pela Pocket Books, quando Gene Roddenberry ainda estava vivo e antes que Rick Berman o sucedesse como o “dono” de Jornada, “Captain’s Log” é um ótimo “sem censura” e um dos melhores livros já feitos sobre os bastidores do franchise. Vale a conferida.

Artigo originalmente publicado no conteúdo clássico do Trek Brasilis em 2002.

1 Comment on "Em defesa de Jornada nas Estrelas V"

  1. Leandro Martins | 25 de outubro de 2008 at 11:35 am |

    Teste.

Comments are closed.