TOS 2×08: I, Mudd

Episódio resgata antagonista carismático e traz humor nonsense à franquia

Sinopse

Data estelar: 4513.3.

Um tripulante chamado Norman, que está a bordo da Enterprise há apenas três dias, intriga o Dr. McCoy por causa de seu comportamento incomum e distante. As suspeitas do médico são confirmadas quando Norman desabilita o operador do controle auxiliar da Enterprise e redireciona a nave. Depois, Norman assalta a engenharia da nave e aumenta a velocidade para dobra sete, colocando uma armadilha nos controles para impedir que suas modificações sejam desfeitas. Norman revela ser um androide, sequestra a Enterprise e leva-a com toda a sua tripulação para uma viagem de quatro dias até um planeta não mapeado e desconhecido, habitado por androides que existem apenas para servir humanos.

Lá, Kirk encontra um antigo conhecido: Harcourt Fenton Mudd, (do episódio da primeira temporada, “Mudd’s Women”). Mudd fugiu da prisão, onde estava preso e condenado à morte por fraude, acabou indo parar naquele planeta, onde estava vivendo como um rei, e lá criou um exército de 500 mulheres androides para satisfazer seus desejos. Ele também criou uma versão de sua rabugenta esposa, Stella, mas, diferente da verdadeira, a androide segue as instruções de se calar quando Mudd ordena.

Mudd está sendo estudado pelos androides, que são hospitaleiros e fazem todas as vontades do meliante, mas se recusam a deixá-lo partir. Eles dizem a Kirk que foram construídos por alienígenas nativos da galáxia de Andrômeda, mas a civilização que os construiu foi destruída por uma supernova, deixando-os sem supervisão de humanos. Agora, os androides acharam um novo propósito de existência com Mudd, por serem máquinas criadas para servir humanos. Spock faz diversas perguntas e descobre que existem 207.809 androides e que eles parecem ser controlados por uma força coordenadora central.

Mudd teletransporta androides para a Enterprise para que eles evacuam toda a tripulação da nave. Chekov fica fascinado quando descobre que as androides fêmeas foram programadas para desenvolver todas as atividades de que as fêmeas humanas são capazes. Uhura também não acha o cárcere tão desagradável quando lhe é prometida a imortalidade. A ideia de Mudd de sequestrar a Enterprise era a de trocar Kirk e a tripulação por sua liberdade, para que ele pudesse deixar o planeta. Mas os androides não permitem que Harry finalize seu plano, pois eles acham os humanos muito destrutivos e planejam ludibriá-los, “servindo” (de acordo com sua programação) todos os humanos da galáxia para, assim, poderem controlá-los, utilizando a Enterprise como veículo e instrumento.

Spock percebe que existem muitos robôs dos modelos Alice, Oscar e outros, mas somente um Norman. Ele especula que este deve ser o coordenador central e sugere para que a tripulação coordene suas tentativas de fuga e seus esforços em tentar desabilitar Norman. A tripulação, então, começa a bolar uma maneira de escapar: eles sedam Mudd com tranquilizantes e dizem aos androides que precisam ir até a Enterprise para curá-lo. Os robôs estão para permitir isso, quando Uhura revela aos captores que aquilo era apenas um plano da tripulação para voltar à bordo da Enterprise. Ela, então, diz que sua motivação de trair seus colegas era porque queria se tornar imortal. Na verdade, contudo, Uhura estava seguindo um plano da tripulação e, assim, eles começam uma série de ações ilógicas, teatrais e infantis para confundir os androides, para tentar desabilitá-los, em especial Norman, que é o coordenador central. O objetivo é atingido quando Harry diz a Norman: “Tudo que eu digo é mentira” e o robô não consegue processar esse paradoxo.

Os robôs também são reprogramados para sua tarefa original de tornar o planeta habitável para vida humana. Kirk deixa Harry no planeta para servir de exemplo dos defeitos e falhas humanas para os androides. Como uma lição final para Harry Mudd, Kirk deixa no planeta várias cópias de Stella, esposa de Mudd, mas estas não acatam as ordens de Harry, como a anterior, para desespero do trapaceiro.

Comentários

Um olhar distraído sobre este segmento de Jornada nas Estrelas poderia encontrar apenas um episódio descontraído e debochado ao passar por ele, que traz de volta um conhecido personagem e se aproveita de alguns elementos já vistos na temporada anterior, principalmente se assistido pela primeira vez e sem muita atenção. O dono desse olhar não estaria errado pois “I, Mudd” é isso, sem dúvida alguma, mas também é muito mais.

“I, Mudd” é uma parábola bem-humorada que reafirma o conceito Gene Roddenbbery sobre a importância do homem além de qualquer avanço tecnológico. Os androides deste episódio são perfeitos e seu mundo, um sonho, onde, segundo o próprio Kirk, todas as necessidades de um ser humano podem ser satisfeitas. Podemos resistir a essa tentação? E quais as reais implicações disso para um ser humano e seu estilo de vida?

Esse axioma esteve presente em diversas obras de ficção ao longo da história. Desde os contos de Asimov, a literatura, o cinema e a TV povoam nossas mentes com histórias que usam esse tema de uma forma ou de outra. Metrópolis, O Homem Bicentenário, Eu, Robô, Exterminador do Futuro, Blade Runner e Ex-Machina são apenas alguns exemplos de muitas dessas histórias que abordaram o tema da vida artificial e suas consequências e, aqui, vemos uma dessas possibilidades sendo exploradas.

E mesmo a Série Clássica já havia abordado o tema de uma forma diferente em sua primeira temporada, no episódio “What are Little Girls Made Of?”, onde a questão dos androides é trazida à Jornada pela primeira vez. Temos, em ambos os casos, um grupo de androides, criados por seres muito antigos e extintos, encontrados por acaso e que podem eventualmente vir a substituir até mesmo seres humanos, mas as consequências de seu encontro com membros da Federação acabam sendo bem diferentes.

Começando por seu envelope, o segmento traz de volta Harcourt Fenton Mudd (Roger C. Carmel), a quem conhecemos no episódio “Mudd’s Women”, mas com algumas sutis diferenças em seu perfil psicológico. Eu sua primeira aparição, Mudd era um mais vilão convencional. Um contrabandista e traficante do tipo mais baixo possível, pelo qual não há como nutrir nenhuma empatia. Já o personagem, neste segmento, sofreu um “realinhamento” e, aqui, é mais o tipo “bom malandro”, com aquele jeitão preguiçoso e bon vivant, e mais sintonizado com essa nova proposta, bem menos dramática que a anterior envolvendo o personagem e que permite uma interação diferente entre o personagem e a tripulação da Enterprise.

Carmel consegue criar um personagem de muito carisma, o único com direito a bis nas temporadas da Série Clássica. Harcourt Fenton Mudd é um personagem que desperta a sensação “ame-o ou deixe-o”, um misto de Dr Smith (Lost in Space) com Quark (DS9). De fato, ele bem que poderia ser considerado o primeiro ferengi da história de Jornada, dadas as suas características tão pouco éticas.

Essa mudança se torna necessária, dado o viés mais leve deste segmento, que trabalha muito o humor presente todo o tempo, preenchendo praticamente todos os diálogos dos personagens. Esse humor visto aqui mistura o tratamento usual dado a essa questão em Jornada com outra proposta mais singular. Existem diálogos rápidos e mordazes, como na abertura do episódio, em que McCoy tenta explicar a Spock os motivos de suas preocupações quanto a Norman, sem sucesso, ou quando Kirk e Mudd debatem sobre a forma como o mascate chegou àquele lugar. Aliás, o segmento abre e fecha com a clássica disputa filosófica entre Spock e McCoy.

A cena em que Kirk coloca em prática o seu plano de fuga gera cenas de humor nonsense tão surreais que seriam dignas de uma peça do Monty Python. Toda a ação que começa quando se descobre o plano dos androides e culmina com a derrota destes está impregnada do estilo que viria a ser a marca registrada do grupo inglês, algo arriscado de se fazer numa série de TV que se leva tão a sério quanto Jornada, mas realizado com competência e absoluto sucesso. Outra lembrança bem divertida desse tipo de humor é o Batman, de Adam West, sucesso na década de sessenta ao levar essas situações além de todos os limites.

Para que esse roteiro funcione, a mudança não atinge somente Mudd. Toda a tripulação tem um comportamento mais leve e despreocupado, a começar pela incomum passividade com que Kirk aceita o sequestro da Enterprise pelo androide Norman, algo que não condiz com o perfil do personagem ao qual estamos acostumados.

Isso só é explicado pela proposta deste segmento, que, diferente de “Mudd’s Women” — que lidava com temas mais pesados (ainda que habilmente camuflados), como prostituição, trafico de escravas e, principalmente, o uso de drogas — o presente segmento parece ser a observação do ser humano, no que ele tem de melhor e pior, tema que viria a ser recorrente em Jornada, sem dúvida, mas que, aqui, é tratado de forma singular.

Mais uma vez, temos uma ótima atuação de Nimoy e uma excelente participação do vulcano, componente importante da trama e que funciona como elemento de ligação entre a tripulação da Enterprise e os androides de Mudd. Ao fazer isso, o episódio nos dá uma oportunidade interessante de observar esse personagem de um ângulo diferente.

Comumente, Spock é comparado com um computador ou uma máquina em função de sua lógica, às vezes quase fundamentalista, mas, aqui, percebemos que a lógica não precisa ser necessariamente mecânica e o roteiro ilustra essa diferença. É necessária uma inteligência criativa para poder equilibrar a lógica e a sabedoria, como o próprio personagem afirmaria no futuro. O vulcano, tradicionalmente sereno, começa o episódio debatendo com McCoy e, depois, apoia com maestria quase todos os momentos importantes do segmento, fornecendo um contraponto que flerta com a ironia em suas intervenções. Mérito para o mais uma vez excelente trabalho de Nimoy.

Além de Spock, este é um dos raros episódios da Série Clássica em que quase todos (com exceção de Sulu) os personagens secundários têm boas participações ao longo da trama, que mantêm o foco em Kirk e Spock, mas equilibra bem as ações entre os outros membros da equipe. Embora McCoy perca um pouco de espaço, a distribuição desse espaço entre os outros membros do grupo é bem-vinda e eficiente.

Se é verdade que fazer comédia é muito mais difícil que drama, quem também merece destaque é William Shatner, com uma muito competente atuação. O ator consegue entregar um personagem em um tom muito correto e com um ótimo timing, tanto para as cenas mais sérias como nos momentos de humor, que aqui são frequentes, porém muito bem ajustados à proposta do roteiro.

O convidado especial Richard Tatro também consegue fazer um bom papel como o androide Norman. O ator demonstra habilidade quando consegue, com a pouquíssima variação que seu papel permite, apresentar um personagem quase cordial nos primeiros três quartos do episódio e parecer ameaçador ao final. Um belo trabalho. No mais, as participações das atrizes que fizeram o papel das androides cumpriram seu papel, embora sem destaque. A música composta por Samuel Matlovsky para este segmento também funciona muito bem e merece menção.

A cena final, na qual conhecemos o castigo imposto pelo maquiavélico Kirk a Mudd, com direito a um adeusinho debochado da tripulação da Enterprise, encerra o segmento com a muita propriedade e de forma simbólica.


“I Mudd” é um dos episódios mais interessantes produzidos pela Série Clássica e vale a pena ser revisitado e apreciado em suas várias camadas. Um episódio pautado no humor, mas que também faz uma menção a um tema que se mantém atual em tempos de inteligência artificial. “I Mudd” também flerta com algumas outras versões de Jornada. Seria Norman uma proto rainha borg? E uma hipotética raça de androides, que foi postulada em “The Measure of a Man” (TNG), teve seu impacto na primeira temporada da série Picard… Enfim, “infinitas diversidades em suas infinitas combinações”.

Avaliação

Citações

 “There’s something wrong about a man who never smiles, whose conversation never varies from the routine of the job, and who won’t talk about his background.”
(“Existe algo errado acerca de um homem que nunca sorri, cuja conversa nunca varia além de sua rotina de trabalho e que nunca fala sobre sua família.”)
McCoy

“The guilty party has his choice. Death by electrocution, death by gas, death by phaser, death by hanging…”
(“O acusado tem sua escolha. Morte por eletrocussão, morte por gás, morte por feiser, morte por estrangulamento…”)
Spock

“Knowledge, sir, should be free to all.
(“Conhecimento, senhor, devia ser livre para todos.”)
Mudd

“It is necessary to have purpose.”
(“É necessário ter um propósito”.)
Alice

“Your species is self-destructive. You need our help.”
“Sua espécie é autodestrutiva. Vocês precisam de nossa ajuda.”)
Norman

“Logic is a little tweeting bird chirping in a meadow. Logic is a wreath of pretty flowers which smell bad.”
(“Lógica é um pássaro pequeno que chilra em um prado. A lógica é uma grinalda das flores bonitas que cheiram mal”.)
Spock

Trivia

    • O personagem Harcourt Fenton Mudd retornaria na Série Animada em novembro de 1973, no episódio “Mudd’s Passion”, também em Star Trek Discovery, “Choose Your Pain” e Magic to Make the Sanest Man Go Mad e no Short Trek “The Escape Artist”. Roger C. Carmel deu vida à primeira versão do personagem (2266–2269), enquanto Rainn Wilson foi o responsável por sua versão moderna.
    • A produção da série usou gêmeos para retratar as “séries” de androides, conseguindo um resultado final muito eficiente. Tal recurso, aliado à criatividade, permitiu que os androides fossem “multiplicados” atendendo as necessidades do roteiro.
    • O primeiro roteiro de “I, Mudd” dava mais atenção ao sequestro da Enterprise por Norman. Nessa versão, Spock chega a sugerir que o androide seja desmontado.
    • Sobre o autor da história, Stephen Kandel: Além de “I, Mudd” , Kandel também escreveu “Mudd’s Women”(com Gene Roddenberry) para a Série Clássica. Para a Série Animada, ele foi responsável pelas historias de “Mudd’s Passion” e “The Jihad”.
    • Este foi o único trabalho do músico Samuel Matlovsky para Jornada nas Estrelas. Ele compôs a parte inédita da trilha sonora do episódio
    • Nota triste: Roger C. Carmel cometeu suicídio em 11 de Novembro 1986.
    • Com exceção dos atores regulares da série, Roger C. Carmel foi o único ator a interpretar o mesmo personagem em mais de um episódio de TOS.

Ficha Técnica

História de Stephen Kandel
Dirigido por Marc Daniels

Exibido em 3 de Novembro 1967

Título em português: “Eu, Mudd” (AIC-SP), “Eu, Mudd” (VTI-Rio)

Elenco

William Shatner como James T. Kirk
Leonard Nimoy como Spock
DeForest Kelley como Leonard H. McCoy
James Doohan como Montgomery Scott
Nichelle Nichols como Nyota Uhura
George Takei como Hikaru Sulu
Walter Koenig como Pavel Chekov

Elenco convidado

Roger C. Carmel como Harry Mudd
Richard Tatro como Norman
Alyce Andrece como Alice
Rhae Andrece como Alice

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Edição de Carlos Henrique B. Santos
Revisão de Nívea Doria

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